quarta-feira, 7 de março de 2012

NIETZSCHE



Num certo canto remoto do universo cintilante vertido em incontáveis sistemas solares havia uma vez um astro onde animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e hipócrita da «história mundial», mas foi apenas um minuto. Depois de a natureza ter respirado umas poucas vezes, o astro enregelou congelou e os animais inteligentes tiveram de morrer. Assim, alguém poderia inventar uma fábula como esta e, no entanto, não ficaria suficientemente esclarecido quão lastimável, quão obscuro e fugidio, quão desprovido de finalidade e arbitrário se apresenta o intelecto humano no interior da natureza. Eternidades houve em que ele não existia; quando ele tiver de novo desaparecido, nada se terá alterado. Pois para este intelecto não há outra missão que transcenda a vida humana. Antes pelo contrário ele é humano, e só o seu dono e progenitor o encara tão pateticamente como se ele fosse o eixo à volta do qual gira o mundo. Mas se nós conseguíssemos comunicar com um mosquito, saberíamos que também ele paira neste ambiente com a mesma presunção e se sente como centro voador deste mundo. Na natureza não há nada de tão censurável e limitado que não se inchasse qual tubo insuflável por meio de um pequeno sopro dessa força do conhecimento; e tal como todo e qualquer carregador ambiciona ter o seu admirador, assim o homem mais orgulhoso, o filósofo, julga ver de todos os lados os olhares do universo, quais telescópios dirigidos para o seu agir e pensar.

É estranho que o intelecto seja capaz disso, ele que é acrescentado apenas como auxiliar aos seres mais infelizes, mais delicados e efêmeros para os sustentar durante um minuto na existência, da qual, sem este contributo, eles teriam toda a razão de fugir como o filho de Lessing. O orgulho ligado ao conhecer e sentir que põe uma névoa ofuscante nos olhos e sentidos dos homens engana-os por conseguinte sobre o valor da existência pelo fato de encerrar em si o apreço mais lisonjeiro acerca do conhecimento. O seu efeito mais geral é a ilusão, mas também os efeitos mais particulares contêm em si algo de índole semelhante.

O intelecto, como meio para a conservação do indivíduo, desenvolve as suas forças dominantes na dissimulação, pois este é o meio graças ao qual os indivíduos mais fracos, os menos robustos, se conservam e aos quais está vedado lutar pela existência com o auxílio de chifres ou de dentes afiados das feras. No homem, esta arte da dissimulação atinge o seu ponto mais alto; nele a ilusão, a lisonja, a mentira e a fraude, o falar nas costas dos outros, o representar, o viver no brilho emprestado, o usar uma máscara, a convenção que oculta, o jogo de cena diante dos outros e de si próprio, numa palavra, o esvoaçar constante em torno dessa chama única, a vaidade, são de tal modo a regra e a lei que não há quase nada mais inconcebível do que o aparecimento nos homens de um impulso honesto e puro para a verdade. Estes estão profundamente submergidos em ilusões e visões oníricas, o seu olhar só desliza pela superfície das coisas e vê aí (aproximando-se dos filhos) «formas», a sua percepção não conduz em parte alguma à verdade mas satisfaz-se com receber estímulos e, por assim dizer, com um jogo tateando a custo das coisas. Além disso, de noite o homem deixa-se, durante uma vida inteira, enganar em sonhos, sem que o seu sentimento moral jamais procure evitá-lo, ao passo " que parece haver homens que deixaram de ressonar pela simples força de vontade. Que é que o homem no fundo sabe acerca de si mesmo? Sim, se ele conseguisse ao menos uma vez percepcionar-se perceber-se completamente como se estivesse metido num expositor de vidro iluminado! Não é que a natureza lhe oculta a maior parte das coisas, mesmo sobre o seu corpo, para banir e fixá-lo longe das dobras intestinais, longe do rápido fluir da corrente sanguínea e dos estremecimentos emaranhados das fibras, numa consciência orgulhosa e malabarista! A natureza deitou fora a chave e ai da fatídica curiosidade que conseguisse, através de uma fenda, olhar para fora e para baixo da câmara da consciência e que agora pressentia que o homem assenta no impiedoso, no sôfrego, no insaciável, no homicida, na indiferença do seu não saber e como que suspenso em sonhos preso nas costas de um tigre. De onde, com os diabos, vem nesta constelação o impulso da verdade?


Na medida em que o indivíduo se quer conservar relativamente aos outros indivíduos, este, na maior parte das vezes, utiliza o intelecto num estado natural das coisas, somente para a dissimulação; mas, como o homem quer existir tanto por necessidade como por tédio, socialmente e em rebanho, precisa de fazer a paz e aspira a que desapareça do seu mundo pelo menos o mais brutal BELLUM OMNIUM CONTRA OMNES. Esta paz traz consigo algo que se parece com o primeiro passo para a obtenção daquele enigmático impulso para a verdade. Acontece que agora é fixado aquilo que doravante deve ser a «verdade», ou seja, é inventada uma designação das coisas tão válida como vinculativa e a legislação da língua produz também as primeiras leis da verdade, pois aqui surge pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira. O mentiroso utiliza as designações válidas, as palavras, para fazer com que o irreal pareça real. Ele diz, por exemplo, «Sou rico», quando a designação correta para a sua situação seria precisamente a palavra «pobre». Faz mau uso das convenções estabelecidas através de trocas arbitrárias ou até inversões dos nomes, feitas a seu bel-prazer. Se ele atuar desta maneira em proveito próprio e prejuízo dos outros, então a sociedade perderá a confiança que nele depositava e exclui-lo-á por isso. Os homens neste caso fogem não tanto de ser enganados, mas mais de ser prejudicados pela fraude: a este nível, no fundo, eles não odeiam o engano, mas sim as conseqüências más e adversas de determinadas espécies de engano. É só num idêntico sentido restrito que o homem deseja a verdade: aspira às agradáveis conseqüências da verdade que conservam a vida, é indiferente ao puro conhecimento inconseqüente e é até avesso às verdades talvez prejudiciais e destruidoras. E, para, além disto, qual é a situação relativamente às convenções da língua? Serão elas talvez produtos do conhecimento, do sentido da verdade? Coincidirão as designações e as coisas? Será a língua a adequada expressão de todas as realidades?


Só mediante o processo do esquecimento pode o homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no grau que acabamos de assinalar. Se ele não quer satisfazer-se com a verdade sob a forma de tautologia, isto é, com invólucros vazios, então estará eternamente a receber ilusões como se fossem verdades.

Que é uma palavra? A representação sonora de um estímulo nervoso. Porém, deduzir a partir de um estímulo nervoso para uma causa que nos é exterior é já o resultado de uma incorreta e indevida aplicação do princípio de razão. Como poderíamos nós dizer, se na gênese da língua a verdade, o ponto de vista da certeza, tivessem sido os únicos decisivos nas designações, como poderíamos nós então dizer «A pedra é dura», como se conhecêssemos a palavra «dura» de outro modo que não apenas como estímulo completamente subjetivo! Dividimos as coisas em gêneros: dizemos que a árvore é feminina e o arbusto é masculino. Que transferências arbitrárias! Como foram ultrapassados os cânones da certeza! Falamos de «serpente»: a designação quer apenas dizer serpentear, mas podia também ser aplicada ao verme. Que delimitações arbitrárias, que preferências parciais, tão depressa desta como daquela particularidade de uma coisa!

Comparadas entre si as diferentes línguas mostram que nas palavras nunca é a verdade que importa, nem a expressão adequada: caso contrário, não existiriam tantas línguas. A «coisa em si» (que seria precisamente a verdade pura sem conseqüências) é também para o onomaturgo totalmente inapreensível, e mesmo nada desejável. Ele designa unicamente as relações das coisas com os homens e socorre-se para a sua expressão das mais ousadas metáforas. Uma estimulação nervosa traduzida numa imagem! Primeira metáfora. A imagem de novo transformada num som! Segunda metáfora. E de cada vez uma transposição completa de uma esfera para outra totalmente diversa e nova. Pode-se imaginar uma pessoa completamente surda e que nunca tenha tido uma sensação do som e da música: tal como ele se espanta com as figuras acústicas chladnianas na areia, encontra as suas causas na vibração das cordas e jurará com base nisso saber agora a que se chama «som», assim acontece com todos nós a respeito da linguagem. Julgamos saber algo das próprias coisas quando falamos de árvores, cores, neve e flores e, no entanto, não dispomos senão de metáforas das coisas que não correspondem de forma alguma às essencialidades primordiais. Tal como o som enquanto figura de areia, o enigmático X da coisa em si é tomado uma vez como estimulação nervosa, depois como imagem, finalmente como som. Em qualquer dos casos não existe lógica no surgimento da linguagem e a totalidade do material do qual e com o qual posteriormente o homem da verdade, o investigador, o filósofo trabalha e constrói, se não se trata de castelos no ar, não provêm tão-pouco da essência das coisas.

Pensemos ainda particularmente na formação dos conceitos? Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente não dever servir para a experiência originária única e totalmente individualizada, à qual deve a sua emergência, algo como recordação, mas também para inumeráveis casos mais ou menos semelhantes, isto é, em rigor, nunca idênticos, portanto, que devem adequar-se a casos sempre diferentes. Todo o conceito emerge da igualização do não igual. Tão certo como uma folha nunca é completamente igual a uma outra, assim também o conceito de folha foi formado graças ao abandono dessas diferenças individuais por um esquecimento do elemento diferenciador e suscita então a representação, como se existisse na natureza, fora das folhas, algo que fosse «a folha», algo como uma forma originária, segundo a qual todas as folhas seriam tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas e pintadas mas por mão desajeitada, de tal maneira que nenhum exemplar tivesse sido executado de modo correto e fiável como a cópia fiel da forma originária.

Chamamos honesta a uma pessoa. Perguntamo-nos: «Porque atuou ela hoje de forma tão honesta?» A nossa resposta costuma ser: «Por causa da sua honestidade.» A honestidade! Isso significa de novo: a folha é a causa das folhas. Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se chamasse «a honestidade»; mas conhecemos inúmeras ações individualizadas e desiguais que nós, pelo não considerar o desigual, igualizamos e que agora designamos como ações honestas; por fim, formulamos a partir delas uma qualitas occulta com o nome «a honestidade». O descurar do individual e do real dá-nos o conceito, do mesmo modo que nos dá a forma, enquanto a natureza não conhece quaisquer formas e conceitos e, portanto, quaisquer gêneros, mas apenas um X para nós inacessível e indefinível. Portanto, também a nossa oposição entre indivíduo e gênero é antropomórfica e não provém da essência das coisas, embora não ousemos dizer que não lhe corresponda: o que seria uma afirmação dogmática e, como tal, tão indemonstrável como a sua contrária.

Que é então a verdade? Um exército móvel de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram poética e retoricamente intensificadas, transpostas e adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixas, canônicas e vinculativas: as verdades são ilusões que foram esquecidas enquanto tais, metáforas que foram gastas e que ficaram esvaziadas do seu sentido, moedas que perderam o seu cunho e que agora são consideradas, não já como moedas, mas como metal.

Continuamos sem saber de onde provém o impulso para a verdade; porque até agora apenas ouvimos falar da obrigação que a sociedade impõe para existir: ser verdadeiro, isto é, utilizar as metáforas usuais, portanto, expresso de uma maneira moral, da obrigação de mentir segundo uma convenção estabelecida, de mentir de um modo gregário, num estilo vinculativo para todos. Ora, é certo que o homem esquece que é isso que se passa com ele; ele mente do modo indicado, inconscientemente e segundo hábitos de séculos — e precisamente através dessa não consciência e através desse esquecimento ele atinge o sentimento da verdade. Deste sentimento de ser obrigado a designar uma coisa como «vermelha», uma outra como «fria», uma terceira como «muda», desperta uma inclinação moral relativa à verdade: a partir da oposição ao mentiroso em que ninguém confia, que todos excluem, o homem prova a si próprio o caráter digno, fiável e útil da verdade. Coloca agora o seu agir enquanto ser racional sob o domínio das abstrações; já não tolera ser arrastado por impressões súbitas, por intuições, ele generaliza todas essas impressões em conceitos descoloridos e mais frios de modo a ligar a eles o veículo da sua vida e do seu agir. Tudo o que distingue o homem do animal depende dessa faculdade de reduzir as metáforas intuitivas a um esquema e, portanto, de dissolver uma imagem num conceito. No domínio destes esquemas, é possível algo que nunca poderia ser conseguido sob as primeiras impressões; construir uma ordem em pirâmide segundo castas e graus, criar um novo mundo de leis, privilégios, de subordinações, delimitações, que agora se contrapõe ao mundo intuitivo das primeiras impressões, como sendo o mundo mais estável, mais geral, mais conhecido, mais humano e, como tal, como o mundo regulador e imperativo. Enquanto cada metáfora da intuição é individual e ímpar e, assim, sabe escapar a toda a classificação, o grande edifício dos conceitos mostra a regularidade estrita de um columbário romano e exala na lógica esse rigor e frieza próprios da matemática.

Quem for tocado por essa exalação fria mal acreditará que também o conceito, descarnado e octogonal como um dado e deslocável como este, apesar de tudo, é como o resíduo de uma metáfora e que a ilusão da transposição artística de uma estimulação nervosa em imagens é, se não a mãe, pelo menos a avó de todo o conceito. Neste jogo de dados dos conceitos, - chama-se porém «verdade» o utilizar cada dado tal como é designado, o contar rigorosamente os seus pontos, formar rubricas corretas e nunca subverter a ordem das castas e a seqüência das classes hierárquicas. Assim como os Romanos e os Etruscos dividiam o céu através de rígidas linhas matemáticas e num espaço de tal forma delimitado, como um templo, fixavam um deus, assim também cada povo tem sobre ele um céu de conceitos semelhantes e matematicamente dividido e, por exigência da verdade, compreende agora o fato de cada deus conceptual apenas dever ser procurado na sua esfera. Pode-se admirar aqui o homem como um imenso gênio construtor, o qual consegue, sobre fundações movediças e como sobre água corrente, a edificação de uma catedral de conceitos infinitamente complicada: na verdade, para encontrar apoio em tais fundações, é preciso que seja uma construção como se de uma teia de aranha se tratasse, tão delicada que possa ser levada pelas ondas, e tão sólida que não possa ser destruída pelo vento. Como gênio construtor o homem eleva-se deste modo muito acima da abelha: esta constrói com cera, que colhe da natureza, ele com uma bem mais delicada matéria, a dos conceitos que ele deve fabricar a partir de si mesmo. Há aqui, no homem, muito que admirar, mas não apenas pelo seu impulso para a verdade, para o puro conhecer das coisas. Se alguém esconde uma coisa por trás de um arbusto, nesse exato lugar a procura de novo e a encontra, nesse procurar e encontrar não há muito que enaltecer: no entanto, é isso que se passa com o procurar e encontrar da «verdade» no interior da razão. Quando dou a definição de mamífero e depois declaro, após observação de um camelo, «Eis um mamífero», deste modo, de fato, uma verdade é trazida à luz, mas é de valor limitado, quero dizer que ela é do princípio ao fim antropomórfica e que não contém um único ponto que seja «verdadeiro em si», real e universalmente válido, a não ser para o homem.

O investigador de tais verdades não procura no fundo senão a metamorfose do mundo no homem, ele luta por um compreender do mundo como coisa antropomórfica e consegue, no melhor dos casos, o sentimento de uma assimilação. De modo semelhante ao astrólogo que observa as estrelas ao serviço do homem e em conexão com a sua felicidade e sofrimento, um tal investigador considera o mundo inteiro como vinculado ao homem, como a ressonância infinitamente modulada de um som originário, o do homem, como a cópia múltiplas vezes reproduzida de uma imagem originária, a do homem. O seu procedimento é tomar o homem como medida de todas as coisas: desse modo, no entanto, ele parte do erro de acreditar que tem essas coisas imediatamente perante si, como puros objetos. Esquece pois as metáforas intuitivas originais enquanto metáforas e toma-as pelas próprias coisas.

Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metáforas, apenas por meio do endurecimento e da solidificação de um fluido originariamente incandescente, de uma torrente de imagens emergentes do poder originário da imaginação humana, apenas por meio da crença inabalável de que este sol, esta janela, esta mesa sejam uma verdade em si, numa palavra, apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito, e enquanto sujeito criador e artista vive ele com algum descanso, segurança e coerência. Se ele pudesse sair por um instante apenas dos muros da prisão dessa crença desapareceria imediatamente a sua autoconfiança. Já lhe é penoso reconhecer como o insecto ou o pássaro percepcionam um mundo completamente diferente daquele que o homem percepciona, e que a questão quanto a saber qual das duas percepções do mundo é a mais correta é uma questão totalmente absurda, pois para ser respondida deveria já ser medida com o padrão da percepção correta, isto é, com um padrão que não existe. Em geral, porém, parece-me que a «percepção correcta» significaria: a expressão adequada de um objecto no sujeito — um absurdo cheio de contradições; porquanto entre duas esferas absolutamente distintas, como entre sujeito e objecto, não existe nenhuma causalidade, nenhuma correcção, nenhuma expressão, mas quando muito uma relação estética, ou seja, uma transposição aproximada, uma tradução que segue o original de forma balbuciante para uma língua totalmente desconhecida: para o que, em todo o caso, é necessária uma esfera intermediária e um poder intermediário livremente poético e inventivo. A palavra «aparência» é muito sedutora, por isso a evito o mais possível: é que não é verdade que a essência das coisas apareça no mundo empírico.

Um pintor a quem faltassem as mãos e que quisesse exprimir pelo canto a imagem que tem na mente, sempre revelaria mais coisas nessa permuta entre esferas do que o mundo empírico revela da essência das coisas. A própria relação entre um estímulo nervoso e a imagem produzida não é em si mesma necessária: se, porém, a mesma imagem for milhões de vezes produzida e legada através de várias gerações e que aparece ao conjunto da humanidade sempre na sequência do mesmo motivo, acaba por adquirir para o homem o mesmo significado como se este significado fosse a imagem única e necessária e como se essa relação entre o estímulo nervoso inicial e a imagem produzida fosse uma rigorosa relação de causalidade; tal como um sonho que, eternamente repetido, seria sentido inegavelmente como a realidade em absoluto. Mas o endurecimento e a solidificação de uma metáfora em nada garantem a necessidade e a justificação exclusiva dessa metáfora.

Qualquer pessoa versada em tais observações sentiu decerto uma profunda desconfiança perante todo e qualquer idealismo desse género e, sempre que se compenetrou com toda a clareza da permanente coerência, da omnipresença e da infalibilidade das leis da natureza, acabou por concluir o seguinte: aqui, ao penetrarmos fundo nas alturas do mundo telescópicos e na profundidade do mundo microscópico, é tudo extremamente seguro, elaborado, infinito e conforme às leis e sem lacunas! A ciência terá eternamente muito a escavar com êxito nesta mina, e todos os achados serão consonantes e não se contradirão. Como tudo isto se assemelha pouco a um produto da imaginação! Porque, se se assemelhasse, teria de deixar adivinhar, onde quer que fosse, o seu carácter de aparência e de não-realidade. A isto há a contrapor que, se cada um de nós tivesse ainda percepções sensoriais de tipo diferente, poderia percepcionar as sensações ora apenas como uma ave, ora como um verme, ora como uma planta, ou o mesmo estímulo seria visto por um de nós como vermelho e por outro de nós como azul, um terceiro poderia ouvir esse estímulo como um som, e assim ninguém falaria de uma tal conformidade às leis da natureza, antes conceberia esta apenas como uma construção extremamente subjectiva. E que é então para nós afinal uma lei da natureza? Não a conhecemos em si mas apenas nos seus efeitos, isto é, nas suas relações com outras leis da natureza, que, por seu turno, só nos são conhecidas como relações. Todas estas relações, por conseguinte, remetem apenas umas para as outras, e são para nós totalmente incompreensíveis na sua essência; na verdade, compreendemos nelas apenas aquilo que lhes atribuímos, o tempo, o espaço, ou seja, relações de sucessão e números. Tudo o que de maravilhoso, porém, admiramos precisamente nas leis da natureza, o que exige o nosso esclarecimento e o que nos poderia levar a desconfiar do idealismo, tudo isso está única e exclusivamente no rigor matemático e na inviolabilidade das representações de tempo e espaço. Estas construímo-las nós, todavia, dentro e a partir de nós próprios com a mesma necessidade com que a aranha faz a teia; se somos obrigados a apreender todas as coisas apenas sob estas formas, não é já de admirar que apreendamos em todas as coisas de facto apenas essas formas, porque todas elas têm de conter em si as leis do número, e o número é exactamente o que há de mais espantoso nas coisas. Toda a conformidade às leis, que tanto nos impressiona no movimento dos astros e nos processos químicos, coincide no fundo com aquelas qualidades que nós próprios atribuímos às coisas para nos impressionarmos a nós próprios. Daí resulta, no entanto, que essa formação artística de metáforas, com que em nós se inicia qualquer sensação, pressupõe já essas formas, realiza-se portanto nelas; só a partir da firme permanência destas formas primordiais se explica a possibilidade de se poder construir mais tarde, de novo a partir das próprias metáforas, um edifício de conceitos. Este edifício é nomeadamente uma imitação das relações temporais, espaciais e numéricas que assenta em metáforas.

Conforme vimos é a linguagem que trabalha originariamente na construção dos conceitos, só mais tarde a ciência. Tal como a abelha trabalha simultaneamente na construção dos favos e os enche de mel, assim a ciência trabalha incessantemente nesse grande columbário dos conceitos, na necrópole das intuições, constrói cada vez novos e mais elevados andares, reforça, limpa e renova os favos antigos e esforça-se acima de tudo por encher esta armação elevada até o infinito e por arrumar dentro dela a totalidade do mundo empírico, isto é, o mundo antropomórfico. Se já o homem ao agir liga a sua vida à razão e aos conceitos desta para não ser arrastado e não se perder a si próprio, o investigador constrói a sua cabana mesmo ao pé da torre da ciência para ajudar na sua construção e para encontrar protecção para si debaixo do baluarte, já existente. E bem precisa de protecção, pois existem forças terríveis que o pressionam continuamente e que opõem «verdades» completamente diferentes à «verdade» científica, usando os rótulos mais variados.

Esse impulso para a formação de metáforas, esse impulso básico do homem que não se pode esquecer nunca porque com isso se abstrairia do próprio homem, não está de forma alguma dominado e só até certo ponto refreado pelo facto de se construir para ele um mundo novo, regular e rígido a partir dos seus produtos evanescentes, os conceitos, como se de uma fortaleza se tratasse. Ele procura uma outra área do seu agir, outro leito do rio, e encontra-o no mito e principalmente na arte. Não pára de confundir as classes e células dos conceitos ao propor novas transposições, metáforas e metonímias, ao mostrar constantemente o desejo de configurar o mundo já existente do homem desperto de modo tão colorido, desconexo e inconsequente, aliciante e sempre novo, tal como o é o mundo dos sonhos. No fundo, o homem vígil só tem a certeza de estar desperto devido à teia dos conceitos sólida e regular, e precisamente por isso cai às vezes na crença de que está a sonhar quando esta teia de conceitos é ocasionalmente rasgada pela arte. Pascal tem razão ao afirmar que, se nós tivéssemos todas as noites o mesmo sonho, nos preocuparíamos tanto com ele como com as coisas que vemos todos os dias. «Se um artesão tivesse a certeza de sonhar todas as noites durante doze horas seguidas que era rei, seria», creio bem, diz Pascal, «tão feliz quanto um rei que sonhasse todas as noites durante doze horas que era artesão.» A vigília diurna de um povo excitado pelo mito, por exemplo, o dos Gregos antigos devido ao milagre continuamente em acto tal como o mito o assume, é de facto mais parecida com o sonho do que com o dia do pensador científico a quem a ciência fez perder as ilusões.

Quando toda e qualquer árvore pode falar uma vez como ninfa ou quando, disfarçado de toiro, um deus pode raptar donzelas, quando a própria deusa Atena é vista de repente como passa pêlos mercados de Atenas num belo carro de cavalos, acompanhada por Pisístrato — e nisso acreditavam os bons atenienses —, então em cada instante tudo é possível como no sonho, e a natureza inteira enleia o homem, tal como se ela só fosse um jogo de máscaras dos deuses que, por brincadeira, gozam o homem sob todas as formas.

Mas até o homem tem uma inclinação invencível para se deixar enganar e fica como que encantado de felicidade quando o rapsodo lhe conta contos de fadas épicos como se fossem verdadeiros ou quando, no drama, o actor representa o rei ainda mais regiamente do que o mostra a realidade. O intelecto, esse mestre da dissimulação, permanece tanto tempo livre e isento da sua normal servidão quanto pode enganar sem prejudicar e celebra então as suas Saturnais. Jamais é tão exuberante, tão rico, tão orgulhoso, tão ágil e audaz; possuído de prazer criativo, mistura as metáforas e remove os pétreos limites das abstracções, de modo a designar, por exemplo, o rio como a via móvel que leva o homem ao ponto onde ele normalmente vai a pé. Agora livrou-se da marca da servidão; noutras ocasiões esforçado com melancólica solicitude em ensinar o caminho e as ferramentas a um pobre diabo que aspira a existir, e tal como um servo que, para o seu dono, parte à procura de presa e saque, tornou-se agora dono e pode afastar a expressão de indigência. Independentemente do que ele fizer agora, em comparação com o seu agir anterior tudo é impregnado de dissimulação, tal como o anterior agir o era de distorção. Copia a vida humana, considera-a, no entanto, uma coisa boa e parece dar-se razoavelmente por satisfeito com ela. Os imensos vigamentos e andaimes dos conceitos, agarrado aos quais o homem indigente se vai salvando pela vida fora, são para o intelecto libertado apenas um andaime e um brinquedo para as suas habilidades mais ousadas. E quando o destrói, mistura, recompõe ironicamente, juntando o mais estranho e separando o que está mais próximo, então revela que não precisa de esses recursos da indigência e que agora não é guiado pêlos conceitos, mas sim pelas intuições. Não há caminho regular que leve destas intuições para a terra dos esquemas fantásticos, as abstracções; a palavra não é feita para elas, o homem emudece ao vê-las ou fala em metáforas proibidas e construções de conceitos inauditos para corresponder pelo menos de modo criativo à impressão da vigorosa intuição presente pela destruição e pelo troçar dos velhos limites dos conceitos.

Há épocas em que o homem racional e o homem intuitivo estão ao lado um do outro, um com medo da intuição, o outro com desprezo pela abstracção; este é tão pouco racional quanto aquele é pouco artístico. Ambos desejam dominar a vida: este na medida em que sabe responder às principais necessidades com prevenção, prudência, método, aquele, enquanto «herói felicíssimo» que não vê as necessidades e apenas considera como real a vida dissimulada sob uma _ aparência de beleza. Onde alguma vez o homem intuitivo maneja as armas de forma mais enérgica e vitoriosa que o seu adversário como, por exemplo, na antiga Grécia, pode, na melhor das hipóteses, formar-se uma civilização e fundar-se o domínio da arte sobre a vida. Aquela dissimulação, aquela denegação da indigência, aquele esplendor das intuições metafóricas e, em geral, aquela imediatez da ilusão acompanha todas as exteriorizações de uma tal vida. Nem a casa, nem o porte, nem o vestuário, nem o cântaro de barro deixam transparecer que foi a necessidade que os inventou: como se em todos eles só se devesse manifestar uma felicidade sublime e uma clareza olímpica e simultaneamente um brincar com as coisas sérias. Enquanto o homem dirigido por conceitos e por abstracções apenas se defende da infelicidade por meio deles sem forjar a felicidade a partir das abstracções, aspirando à ausência de dor tanto quanto for possível, o homem intuitivo, estando no seio de uma civilização, colhe já das suas intuições, além da defesa contra o mal, uma iluminação, uma alegria e uma redenção que jorram continuamente. De facto, ele sofre mais intensamente, quando sofre: sim, é verdade que também sofre mais vezes porque não sabe aprender com a experiência e cai sempre na mesma armadilha em que já caiu uma vez. Então ele é tão irracional no sofrimento como na felicidade, grita e nada o consola. Quão diferente é no mesmo infortúnio o homem estóico, ensinado pela experiência e dominando-se através dos conceitos. Ele que noutras ocasiões só procura sinceridade, verdade, ausência de fingimento e protecção contra assaltos traiçoeiros, tira agora da infelicidade a obraprima dissimulação, tal como aquele na felicidade; o rosto que apresenta não estremece nem se move mas como [que apresenta] uma máscara com uma digna ponderação dos traços, não grita e nem sequer altera o tom da voz: quando uma verdadeira carga de água desaba sobre ele, cobre-se com a capa e afasta-se dela a passo lento.


trecho de Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral


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