terça-feira, 6 de março de 2012

DRAMATURGIA ALQUÍMICA: plantando a semente

A proposta é uma criação dramatúrgica, porém, não a criação de um texto de teatro simples ou especificamente, mas a criação de um conceito de dramaturgia, que possa gerar vários textos/objetos, consequentemente.

Desse conceito queremos dizer que não é novo enquanto fundamento da linguagem, pois está inspirado em tradições antigas, como a tradição cabalista, ou não tão antigas, mas bastante exploradas, como nas psicologias da linguagem de Lacan, ou até de Carl G. Jung.

Partindo da idéia de que a linguagem é mais do que comunicação e expressão, e que carrega em si um caráter simbólico, queremos validar, para a dramaturgia, que a palavra tem uma dimensão, inerente, que vai além do "entendimento"; algo em sua estrutura que não está orientada apenas para a comunicação de um elemento comunicável, mas, também para a revelação de algo não comunicável. E não somente validar, porque talvez já tenha esse valor, mas colocar o dito “oque” não comunicável no centro do sentido dramatúrgico, ao contrário do que temos comumente.

"A linguagem, o medium no qual o espírito do homem se concretiza, possui um lado interior, ou seja, um aspecto que não se revela totalmente nas relações de comunicação entre os seres." (O NOME DE DEUS, A TEORIA DA LINGUAGEM E OUTROS ESTUDOS DE CABALA E MÍSTICA: JUDAICA II, de Gershom Scholem, ed. Perspectiva)

Sabemos que algumas línguas, ditas "mortas" (talvez as únicas que tiveram vida) preservavam na sua estrutura, da forma falada, uma relação intrínseca entre significado e significante. No latim, por exemplo, não se podia compreender o sentido de uma oração, senão pelo relacionamento entre o agrupamento das palavras e uma específica expressão sonora para elas; ou seja, a frase "quem sou eu?", em português, pode ser dita de diferentes maneiras, contanto que seus fonemas sejam audíveis e compreensíveis, sem o prejuízo da comunicação de seu sentido. Contudo, em latim, essa comunicação ficaria absolutamente prejudicada, não alcançando o sentido mesmo da frase, se uma específica entoação, ou musicalidade, não fosse aplicada ao sistema. Isso nos coloca a questão de que, para a língua latina (como em outros exemplos possíveis), a comunicação é determinada para além dos efeitos semânticos ou conceituais da palavra (célula formadora); faz-nos entender, também, que as línguas "sobreviventes" no mundo contemporâneo, respondem a uma idéia de comunicação predominantemente conceitual, e muito pouco perceptual, onde o processo acústico é exclusivamente semântico.

Algo não comunicável, mas irradiante na palavra, foi submetido pelo objetivo da comunicação imediata na linguagem contemporânea, em geral; cada língua, conforme as determinações econômico/culturais na qual se insere, preserva mais ou menos esse movimento dinâmico na sua linguística, gerando diferentes graus de afastamento entre as palavras e suas causas primeiras ocultas, das quais procedem. Conforme o estudo da cabala aponta, as letras são signos “provenientes de suas causas primeiras”, uma provável raiz lingüística que abrange toda a linguagem e manifestação do ser, e que consegue traspassar seus efeitos. Ainda nesse estudo verifica-se que o poder mágico do falante está na capacidade de transportar-se para tal raiz.

"O falante grava, de algum modo, o espaço tridimensional da palavra no pneuma." (op.cit.)

Por outro lado, citamos as conclusões que Carl Gustav Jung atingiu nos estudos sobre as associações de palavras: há uma relação intrínseca entre fonética e imaginação, entre som e imagem; propõe uma lei fundamental da imaginação afirmando que seu modo de operação é sonoro, acústico e fonético, ou seja, tanto as palavras como as imagens são fantasias sonoras. Sendo assim, toda imagem psíquica aponta para uma estrutura verbal e para um modelo fonético.

Sendo assim, a dramaturgia passa a solicitar um processo criativo fundamentalmente imago/acústico. Já muitas pesquisas teatrais vêm deslocando a função do ator/intérprete, para o ator/autor; diferentes experiências nesse sentido têm oscilado entre uma colaboração do ator na criação do dramaturgo, e a colocação do ator como o próprio dramaturgo. Considerando as justificativas de pesquisa que salientamos, a realização de nosso estudo depende, necessariamente, da eliminação dessa distinção entre as funções da criação cênica. Destruiríamos todos nossos pressupostos se considerássemos um texto pré-escrito pelo autor, e posteriormente verificado sonoramente pelo ator, ou até escrito conjuntamente entre ambos. No nosso caso só pode ocorrer uma fusão integral das funções, naquele que pratica do rito.

Definida essa premissa passamos à configuração do processo. Além da importância que dedicamos ao estudo de diversificados campos de aplicação como a Cabala, a Psicologia de Lacan e Jung, e principalmente a Alquimia, caracterizamos o início de nossa metodologia pelo estudo de nosso idioma.

Entendemos que a criação desse conceito dramatúrgico pressupõe um mergulho na língua e cultura do autor/ator. Além do óbvio estudo da gramática e sintaxe pertinentes, caberá uma experimentação fonética das células formadoras (as palavras), e mais especificamente das letras/signos. O objetivo de tal verificação é conectar as significações, ou imagens acústicas (e provavelmente arquetípicas) submersas à linguagem. Essa conexão deverá ativar uma força direta que emana das palavras, purificadas ao extremo, aparentemente despidas de significado, mas ao mesmo tempo prenhes de significações e de suas transformações.

O procedimento inspira-se na conclusão junguiana de "tentar liberar e abrir o ego para toda a riqueza polissêmica do discurso imaginal, reduzindo ao máximo a influência da gramática e da sintaxe ao discurso. Buscar diminuir as intensidades da gramática e da sintaxe presentes em excesso no discurso para que a pluralidade e a polivalência da linguagem metafórica da alma possa se expressar." (A ALQUIMIA DAS PALAVRAS, artigo de Marcus Quintaes, Rubedo, www.rubedo.psc.br).

Cabe ressaltar que a linguística brasileira é de extrema diversificação e potente musicalidade, permitindo um amplo campo de estudo; sua formação deriva de diversas fontes linguísticas o que deve provocar diferentes fontes anímicas, se assim se pode afirmar.

A consequência fundamental a ser alcançada é a "ativação" da dramaturgia possibilitando uma inter-relação, entre artista e espectador, de grandeza alquímica, libertando a alma (polissêmica) do aprisionamento da matéria (literalismo dos significados). É esse resultado a que chamamos de DRAMATURGIA ALQUÍMICA.

Nesse sentido então argumentamos que o conceito de DRAMATURGIA ALQUÍMICA vem sugerir que seja definitivamente eliminada a distinção entre ator e autor. Eliminando essa distinção as bases da dramaturgia são reconfiguradas.

É fundamental observar que a eliminação das funções não é uma fusão simples das mesmas num único artista, porém a reconfiguração do conceito de cada função para o surgimento de um novo elemento antes não encontrado. Embora no momento inicial a única possibilidade de entendimento seja utilizando os conceitos já conhecidos das funções, ator e autor, em verdade a DRAMATURGIA ALQUIMICA exige outro tipo de partícipe.

As tentativas de renovação da dramaturgia convencional estando sustentadas nas mesmas bases dos processos a que pretendem superar terminam por redundar essencialmente nos mesmos resultados. Da mesma forma, as tentativas de encontrar no trabalho do ator a solução para uma renovação e reativamento das dinâmicas energéticas competentes à representação cênica, permitem apenas o aumento de compêndios técnicos para interpretação.

A função do ator deve ser completamente deslocada da atividade de intérprete e reestabelecida sua estatura de criador; enfatizamos que a única re-criação cabida ao novo ator está relacionada ao ato primeiro e constitutivo do mundo. Ao contrário de pretender o estabelecimento de uma megalomania de natureza romântica ao status do ator, reativamos sua função arquetípica: O CRIADOR. Entendemos que a ação (não aquela conceituada por Aristóteles) cabível ao ator é a revivência do Ato Primeiro da criação do Universo. Como um Deus/Criador o ator recria continuamente uma única e mesma ação: a Criação de um mundo, e só dessa forma é capaz de transportar-se para a raiz linguística e gravar a tridimensionalidade no pneuma universal.

Deste princípio parte a fonte energética, o sentido transmutador da arte cênica que está na troca estabelecida pelo encontro entre ator e plateia. A DRAMATURGIA ALQUIMICA estabelece conscientemente uma dinâmica invisível entre as partes que justifica o próprio encontro.

No instante que o ator, agora ativo, experimenta o Ato Criativo original e, portanto arquetípico diante da testemunha, ele ascende e acende o catalisador da vida que estabelecerá entre as partes um encontro definitivo porque transmutador. O gestus é o sacrifício de não ser, como a divindade primeva que se desfaz na sua criação para retornar a si mesmo.

Há, portanto apenas um único enredo pertinente a ser dramaturgizado, mascarado nas infinitas formas quantas são as manifestações da criação. A narrativa ou a “liturgização” tornaram-se obsoletas tanto quanto a mimese.

Sublinhamos que a voz, palavra, pneuma é o movimento gerador do sistema. É do sopro que surge o mundo e que se constitui a metáfora. Porém a força motriz do som deve prescindir do conceito senão vindo com e do campo imaginal.

SEMENTE PLANTADA!!




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