domingo, 26 de fevereiro de 2012

As Origens do FLAMENCO

A primeira pergunta para se conhecer alguma coisa é tentar saber de onde veio como nasceu. É uma pergunta ingênua porque não se pode determinar o nascimento de nada sem congelar o tempo e fixar o movimento da vida em fatos; e como tudo que congela se descongela, assim que surgem fatos antes desconhecidos o gigante adormecido da história ganha vida mudando tudo de lugar.

No caso da cultura, manifestação da alma humana, é mais complicado ainda. É claro que existem sistemas de classificação que procuram enquadrar as manifestações culturais em datas, nomes e conceitos diversos. Mas, em vão.

Existem alguns, e cada vez mais, estudos sobre as origens do flamenco. Neles encontramos o flamenco como originário da mescla de praticamente todas as culturas que passaram pelo sul da Espanha, em todos os tempos. E assim é: olhando para o passado, todas as possibilidades de influência são significativas, mas fica impossível determinar o nascimento preciso dessa arte, e de qualquer outra. O que se pode concluir é que a origem do flamenco está no homem que, como em toda arte, tenta expressar seus sentimentos e suas experiências da vida. Por algum motivo, ou por vários deles, uma manifestação aparentemente folclórica, de cultura regional, ganha profundidade e alcança uma dimensão estética; desenvolve-se em técnica e expressão transformando-se em Arte.

Há quem diga que o flamenco começou como música cantada, dos lamentos e alegrias dos homens em trabalho ou até no ócio. Mas, conhecendo a expressão flamenca fica impossível imaginá-la isenta de movimento e dança. Talvez essa crença provenha do fato de que o baile flamenco, mais elaborado, revele-se tardiamente, porém é difícil imaginar que as pessoas se reunissem para cantar tão somente.

Um exemplo deste argumento está na informação sobre o nascimento do palo Martinete: diz-se que o martinete teria nascido dos cantos dos ferreiros em trabalho, talvez lamentando sua sorte. Recriando essa imagem podemos ver o movimento dos braços martelando as bigornas, ritmicamente; os troncos, suados, pendulando e fortalecendo os sons guturais; talvez um homem parasse de trabalhar para cantar o trabalho dos companheiros, e, talvez, esse homem acompanhasse as bigornas ritmadas, batendo um pé, ou suas palmas.... Vale lembrar Glauber Rocha no filme Ponteio, completamente sem falas, mostrando os pescadores trabalhando: eles cantam ritmicamente para tornar fluente os movimentos da rede de pesca, que puxam com uma cadência dançada, fundamental para o bom resultado da atividade conjunta. E emprestando as ideias de Rudolf Laban enxergamos os movimentos físicos de qualquer atividade humana como uma dança porque o homem necessita do ritmo para existir e o “trabalho” é expressão dessa necessidade (pelo menos antes da sociedade de consumo). Em que momento essa necessidade, inevitável, humana, se transforma em manifestação artística?

Ou outro exemplo comum em muitas culturas, nas manifestações religiosas, quando o homem louva aos seus deuses em cantos e danças. Ou ainda, as festas nos lares, com as famílias reunidas cantando e dançando.

O que importa, talvez, é saber por que no sul da Espanha, essas manifestações ganharam tais tonalidades musicais e características expressivas? Voltamos então às influências dos povos, migrantes ou não, conquistadores ou não, antigos e modernos.

A mistura
Nem todos os ciganos são flamencos, porém os primeiros flamencos são os ciganos; talvez porque fossem oprimidos, talvez porque fossem pouco eruditos e preservassem uma cultura oral e exclusiva. De qualquer forma estes ciganos dividem seu espaço e suas dores com outro povo que também é nômade e está sendo perseguido e oprimido: os judeus. E no mesmo espaço físico e metafísico ainda se misturam nativos da Espanha e mouros se revezando no poder e portanto se revezando na submissão. Houve um tempo em que judeus, ciganos e mouros escondiam-se nas curvas das vilas, nas cuevas, nas noites, nos vícios, nos medos, criando o caldeirão de onde o feitiço flamenco se aqueceria. Estamos falando sobre o flamenco puro; mas sua pureza vem de muitas raízes.

E onde deveríamos buscá-lo se sua árvore genealógica é completamente ramificada em variações numerosas, conforme as regiões pesquisadas? Existe algo essencial que permeia tantas possibilidades? O que é, afinal, "ser flamenco"?

Hoje fica mais fácil e mais difícil responder essa pergunta. Mais fácil porque temos cada vez mais registros de como ele aconteceu, pelo menos nos últimos 200 anos. Mais difícil porque o flamenco vem se diversificando e continua se transformando e, a partir dos anos 50, ganhou características expressivas, ou a partir dos anos 70 ganhando qualidades técnicas, que estabeleceram o flamenco como arte definitiva. O flamenco ainda está nascendo.

Mas se queremos reconstruir uma história então devemos retroceder realmente. Vamos pensar o que seriam essas origens voltando-nos para a essência. Encontramos dois caminhos de busca: interno e externo. Se retrocedermos pelo caminho externo, voltaremos ao passado caminhando na figura do tempo, revendo a história, relendo os fatos, o encontro dos povos; se retrocedermos pelo caminho interno, voltaremos ao fundo, ao "passado" na alma, além da figura do tempo, mas na tessitura do grande Tempo onde mora, tão bem expresso por Lorca, "la oscura raiz do grito".

O flamenco nasce assim: AY!!!

Embora essa arte possa ser expressa na alegria, na diversão, na sedução, foi o grito de dor que cravou o flamenco no pneuma do universo. O cante flamenco desenvolveu uma capacidade de transformar a sonoridade do choro, do lamento e do grito em música; ou, visto de outro ângulo, esse grupo humano percebeu a musicalidade da sua própria dor. A técnica para cantar o flamenco, se é que existe, é a mesma para chorar; contraem-se os mesmos músculos e o mesmo intuito de se livrar do sentimento mobiliza a expressividade. O gospel talvez inspire alguma semelhança nessa conduta, esse canto que aparece em várias culturas em louvor do não humano também gerou muitas vezes uma expressividade profunda, ao contrário do canto europeu que desenvolveu uma técnica completamente afastada da mecânica da fala ou sonoridade cotidiana. Contudo o flamenco encontrou sua expressividade no cotidiano, no humano, na experiência comum, na dificuldade de viver simplesmente a vida e por esses elementos é muito comparado ao blues, esse gospel desesperançado; há teses para essa comparação.

E, como citamos, embora se reconheça o nascimento e a essência do flamenco no cante, sabemos que a voz é uma expressão corporal e que não podemos distingui-la do corpo como querem os racionalistas que pretendem que o conceito venha antes da vida. Não há distinção entre os gestos do cantaor e do bailaor, não há possível separação entre o baile e o cante embora sempre ocorram simultaneamente em corpos distintos. A musculatura que se contraiu em quem entoou o AY também contraiu lançou no ar os braços retorcidos, curvou o tronco amargurado e socou o chão de revolta. Quem pode dizer o que primeiro aconteceu? E se nesta noite foi este, na seguinte poderia ter sido aquele. Assim como não se pode distinguir esse “gesto” do rasgueio da guitarra, do compasso sobre a madeira.... a orquestra de pulsos que forma o flamenco, cante-baile-toque, não pode ser separada no tempo porque só as teorias é que necessitam de classificações, a vida não.

O caminho interno de nascimento do flamenco é o mesmo de todos os nascimentos: a respiração. As etnias que formaram essa arte: ciganos, judeus, mouros e nativos espanhóis, todas lutavam pelo mesmo objetivo: LIBERDADE. Assim a respiração flamenca não é o sopro que flui no alívio, no regorjeio de passarinhos que voam; essa respiração é entrecortada, sai em jorros como o sangue de um corte profundo, ou comprimida por uma garganta sendo sufocada, ou ansiosa pelo pulso acelerado de quem sente medo, ou uma respiração em que a violência arranha de revolta as rotas de fuga, e tantas outras imagens tão características.

A origem do flamenco é missionária: se por um lado essa arte resulta da mistura, da convivência das diferenças, por outro prova a capacidade humana de re-encontrar a semelhança, a essencia. Mostra que nossas diferenças são apenas variedades da mesma música e que essa variedade deve ser tanto valorizada como suprimida, uma coisa E a outra.

É da SOMA que se faz o mundo!!

Um comentário:

  1. Sensacional Mulher!!!

    O canto de Cigala, de Capullo de Jerez, Camaron... após este texto, para mim, ganham mais cor.

    Parabéns pela agudeza intelectual!

    Binho.

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