segunda-feira, 15 de agosto de 2016

A PESTE BRANCA

Nessa era globalizada e com a crescente rede de informações, é inaceitável que pessoas continuem chafurdadas na ignorância. E por ignorância eu quero dizer o conhecimento PARCIAL de fatos e reflexões. Torna-se ignorante aquele que, mesmo tendo conhecimento profundo sobre uma matéria, conhece-a apenas a partir do mesmo ponto de vista!

Todos nós temos obrigação social de conhecer detalhadamente a história da humanidade.

E por história não estou me referindo às mentiras ou verdades parciais contadas nos livros didáticos, replicadas nas escolas formadoras de pessoas preconceituosas e desinformadas sobre a horrorosa história que vimos construindo nesse planeta.

De todas as mentiras repetidas há séculos, vamos tratar das construções criadas, por diversos poderes, sobre as diferenças raciais.

Embora o racismo entre povos seja antigo, no período das grandes navegações, invasões e conquistas de novas terras, o racismo atingiu seu ápice em horror e tragédia.

O mundo eurocêntrico, com seu pensamento mercantilista, dotado de força armamentista crescente, tecnologia e com doentia ambição pelo máximo controle sobre outros povos, invadiu centenas de terras estrangeiras e exterminou milhares de pessoas. Eu não disse guerreou, eu disse exterminou.

Seus vetores destrutivos tinham por um lado a vontade de exterminar todas as culturas que não estivessem submetidas ao padrão civilizatório por ele mesmo estabelecido e por outro a vontade de submeter seres humanos aos seus interesses.

O pensamento eurocêntrico, egocêntrico, entendia (e ainda entende) que sua forma de vida e civilização era a melhor e única forma decente, avançada e coerente a ser experimentada por todos os seres humanos. Ainda há quem concorde!!

Todas as culturas, tecnologias, sabedorias, práticas religiosas, culinárias, expressões artísticas, organizações sociais que não tivessem origem no pensamento eurocêntrico foram consideradas atrasadas, demonizadas, primitivas, selvagens e até animalescas.

O objetivo na desmoralização dessas outras culturas era escravizar seres humanos.

A escravatura não é apenas uma expressão da maldade humana, um exercício de crueldade desinteressado, é também uma eficiente forma de enriquecer sem fazer esforço. Estou falando de riqueza material obviamente, já que é um empobrecimento espiritual sem precedentes.

Os povos eurocêntricos, que a partir de agora vou chamar de “brancos”, fizeram uma varredura genocida por todos os pedaços de terra que conseguiram alcançar.

Isso não é suposição, não é julgamento, é apenas realidade histórica.

Só na época mercantilista, os brancos exterminaram, direta ou indiretamente, mais gente que em todas as guerras em todos os tempos. Civilizações inteiras foram minuciosamente eliminadas.

(Se estiver achando exagero, releia o primeiro parágrafo.)

Documentos históricos e pesquisas modernas nos revelam que toda a história moderna foi escrita e contada a partir de um único ponto de vista: o do branco.

Todas as outras experiências de vida, relatos, provas, filosofias foram eliminados ou obscurecidos, desde a Idade Antiga, com o intuito de fazer prevalecer uma única perspectiva histórica.

Para efetivar essa empreitada de demolição das verdadeiras histórias vivenciadas pelos seres humanos, para fazer valer esse projeto de poder, vários setores do conhecimento humano se uniram no mesmo objetivo.

O papel da Igreja Católica foi dar a principal base filosófica para esse projeto, chegando a afirmar que os povos não brancos eram destituídos de alma, embora outras linhas da filosofia também acrescentassem a essa vertente racista.

Toda uma narrativa mítica e um vocabulário foram sendo formatados para distinguir qualidades humanas e criar o mais pernicioso instrumento de dominação entre povos: o preconceito. Embora essa construção já viesse sendo elaborada desde o nascimento do mundo ocidental, na Grécia, foi a Igreja Católica que conseguiu consolidar popularmente os cânones do que seria o homem bom e mal, sadio e doentio, superior e inferior.

Outro importante consolidador dos instrumentos de dominação foi a Ciência.

Desde a Idade Média até os tempos de hoje, a Ciência, supostamente atestadora da realidade indiscutível, detentora da verdade comprovada, criou todas as bases para o que hoje conhecemos como racismo.

Diversos estudos e postulados foram desenvolvidos para comprovar o que Deus, ou a Natureza, não criou: as raças.

O termo raça foi cunhado por Lineu no século XVII e referia-se à classificação de diferentes populações de uma mesma espécie biológica. Até então as distinções entre grupos humanos davam-se em torno de conceitos etnocêntricos, pois eram pautados em questões culturais, e não de “raça”.
No século XIX, o Conde de Gobineau escreveu o “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas”, trazendo à tona a ideia das diferenças e hierarquização raciais. Ideia que, apesar de obtusa, difundiu-se. Alguns apoiaram-se equivocadamente em Darwin e sua teoria da evolução das espécies para consolidar o racismo.

Antes do século XIX, considera-se que predominava uma visão etnocentrista e não racial.

Hoje, com os estudos da nova física, conseguimos compreender que nem mesmo um cientista está isento de sua moralidade para observar a realidade. Se antes se entendia que esse profissional era o único capaz de observar a realidade com isenção, sem interesses e total objetividade, hoje se sabe que essa capacidade é impossível. Não existe uma realidade totalmente objetiva apreensível pelo ser humano.

Sendo assim, embora as descobertas científicas tenham melhorado significativamente nossa vida no planeta, inúmeros estudos dessa natureza serviram apenas para fortalecer o poder do branco sobre todos os não brancos.

Todas as bases do racismo sobre diversos povos, ao cúmulo da formulação do pensamento eugênico, foram formuladas pela ciência.

Essas duas frentes de construção da realidade foram terrível e sabidamente aproveitadas, financiadas e incentivadas pelo poder político e econômico.

O antigo mercantilismo e o nascente capitalismo aproveitaram essa formatação mental e afetiva que veio sendo lapidada.

A introjeção seja de postulados religiosos ou de postulados científicos insuflou a pior forma de subjugação entre seres humanos: o racismo.

E este projeto de poder foi tão bem executado que, mesmo hoje tendo sido destruída a teoria das raças, e sendo questionada a teoria das etnias, há uma imensa população que perpetua esses conceitos e suas consequentes atrocidades.

O problema é de tamanha profundidade que seres humanos são capazes de torturas físicas, emocionais e psicológicas contra outros seres humanos, baseadas em teses falaciosas, conflitos esses eficientemente aproveitados pelo poder econômico e político.

Muitos povos foram chamados de “negros” ao longo da história, sempre de forma pejorativa contra os grupos dominados e para sustentar essa dominação, mesmo quando não haviam brancos no poder estabelecido.

Porém, com a consolidação do poder eurocêntrico e a instituição do conceito de raça branca, negra e amarela, foram os povos do continente africano que receberam esse título, e toda sua carga conceitual, e até hoje são assim designados. Conhecidos como “negros”, termo supostamente justificado pela cor escura da pele, os povos afrodescendentes são o grupo humano que permaneceu escravizado por mais tempo, e em maior número, na história da humanidade.

Enquanto os amarelos foram deixados de lado pelos interesses de dominação, brancos impuseram aos negros, agora exclusivamente afrodescendentes, um rompimento histórico e definitivo.

Apesar das mais recentes pesquisas apontarem o nascimento da humanidade no continente africano, não só genética, mas culturalmente, o preconceito de brancos contra negros não diminui e se perpetua. Esse preconceito levou o nome de racismo.

Repetindo: racismo é o todo o processo histórico de dominação, extermínio e subjugação do branco sobre o negro (existem outras formas de racismo na história, mas sempre apoiadas nesse mesmo processo de dominação. Qualquer forma de discriminação, por exemplo, de negros contra brancos não é chamada de racismo porque não está baseada num processo histórico de dominação, sendo chamada de preconceito. Ou seja, preconceito é uma discriminação pontual e racismo é uma discriminação processual, histórica).

Teorias antigas e absurdas, como a que indicava que negros eram descendentes do cruzamento entre mulheres brancas e macacos (não fui eu quem inventou essa aberração teórica), continuam como base central do racismo em pleno século 21, que impõe outras formas de escravagismo, menos explícitas.

 (Pausa para refletir sobre há quanto tempo essa tortura se perpetua.)

Felizmente e com o custo de muito sangue, os negros vieram traçando um caminho de recuperação de sua identidade cultural. Essa luta sofrida, hoje chamada de empoderamento, colaborou e colabora (junto a outras minorias) na construção dos atuais entendimentos de democracia. A democracia não é uma estrutura criada pelo poder, mas sim uma forma de organização social conquistada pela luta de minorias, sendo a população negra muito importante no amadurecimento desse projeto de organização humana.

Conquistas civis, legais e sociais vêm sendo ampliadas a muito custo, já que o racismo ainda é violentamente presente no comportamento humano.

Finalmente, chegamos ao objetivo desse texto: fazer entender a importância de eliminar o branco, entendido como o vetor de opressão racial.

O que estou sugerindo é o extermínio da população eurodescendente? Obviamente não.

Muitas foram as teses acerca da inferioridade dos negros, dos índios, dos aborígenes, enfim, dos não brancos.

E quais são as teses sobre a inferioridade branca?

Já temos estatísticas suficientes para concluir que há uma doença no gene da branquitude, uma deficiência, ou não?

Enquanto os brancos chamavam os negros de animais, eram eles que assim se comportavam, no pior sentido da expressão. Das focas mortas a pauladas para vender bibelôs de madame, ao estudante negro e homossexual morto à paulada no campus da sua universidade, principalmente o branco heteronormativo vem matando feito um anômalo. Para ele, fora ele, o resto é bicho.

Apenas por vontade de imposição de seus desejos mesquinhos, os brancos europeus aniquilaram culturas, etnias, tecnologias e pessoas aos milhões. Sem exageros, foram mortas milhões de pessoas.
As expedições colonialistas traçaram caminhos de destruição que modificariam a história do planeta para sempre. Mudaram nosso futuro.

Como estaríamos vivendo se todos os povos que foram dizimados não o tivessem sido? Como estaríamos vivendo se não tivesse havido uma violenta imposição da civilização eurocêntrica e sim um compartilhamento de sabedorias entre as diversas culturas?

É muito provável que não estivéssemos a um passo de nossa autodestruição, da destruição da única raça que realmente existe: a raça humana.

Algo, na chamada raça branca, funcionou como uma doença obsessiva, A PESTE BRANCA, e intensificou no ser humano o que ele tem de pior.

Os brancos ficaram cegos, surdos e obsessivos pelo controle do Universo.

De que cor mesmo é o deus cristão?

Branco.

(Jesus, ao longo dos anos, passou pelo mesmo processo que Michael Jackson para clareamento de pele… até ficar branco de olhos azuis, coisa que Michael não conseguiu!)

Por mais que os brancos se esforcem para colocar no negro a imagem de bandido mau-caráter, é a história que está dando cor branca aos piores humanos em todos os tempos.

É estruturado nesse racismo construído que o capitalismo floresce e perpetua suas condutas em novas vestes.

Acho que já passou da hora de estudarmos essa PESTE BRANCA em vez de ficarmos gastando tempo tentando provar que os não brancos não são inferiores.

Se por um lado os negros vão e devem continuar lutando por um sistema de igualdade e respeito, luta essa que deve ser integralmente apoiada por brancos, por outro lado há muito o que fazer para desconstruir o racismo.

A desconstrução do racismo não é uma atitude dos negros (a eles cabe o empoderamento da sua cultura), mas dos brancos, pois é neles que se perpetua essa doença contagiosa.

Não basta apoiar a “causa negra”, que é o mínimo que qualquer ser humano decente deve fazer, mas é imprescindível lutar contra o racismo dentro de si mesmo e no ambiente.

E quando falo de lutar contra o racismo insisto que não basta defender um negro que esteja sendo violentado (faça isso sempre), apoiar políticos e políticas de direitos para negros (sem dar pitaco!), mas reconhecer os privilégios raciais impregnados no cotidiano do branco.

O racismo só vai acabar (tenho fé que consigamos chegar a esse objetivo) quando o branco deixar de ser branco.

Portanto, o que pretendo é me dirigir ao branco, que vive privilégios raciais, para que enfrente a si mesmo e que lute por essa ideia: VAMOS ACABAR COM A PESTE BRANCA que se perpetua em nós!!!


(texto originalmente escrito para a revista virtual LINGUA DE TRAPO : publicação original)


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