terça-feira, 15 de maio de 2012

O Nascimento da Didática Flamenca: primeiras suposições


Minha reflexão não está baseada em nenhum estudo científico, em nenhum estudo antropológico, em nenhuma pesquisa de nenhuma natureza. Este blá blá blá que vou propor está baseado na minha imaginação, na minha forma reflexiva de observar a realidade atual do ensino do flamenco, em particular da dança, para supor sua gênese, como se deu essa história.

(Aliás, a história é sempre uma visão imaginativa de uma realidade suposta que se localiza num tempo que não existe e que chamamos de “passado”. Preferimos quando essa produção criativa tenta se sustentar em estudos, objetos e pesquisas que nos aproximem dos fatos desse passado, mas a interpretação que fazemos desses objetos e “provas” é ainda pura imaginação.)

Vou seguir com meu deleite.

Vou supor então que num dado momento o flamenco já existia: alguns grupos sociais cultivavam (no sentido de Cultura) essa forma de expressão, essa forma de diversão. Em vários cantos da Andalucia, ao mesmo tempo, foram pipocando expressões que se entrecruzavam e se transformavam até gerar uma “coisa” que já tinha um corpo próprio que se denominou: o flamenco.

Detalhes dessa história à parte imagino ainda que, diante da pobreza e da necessidade, alguns nesses grupos entenderam que podiam transformar isso em “trabalho”, ou porque eram talentosos e paravam a festa, passaram a receber um copinho de xerez de graça, depois uma pratito de paella. Então passaram a ser convocados para alegrar a galera, ou talvez tenham ido até uma cueva e deram idéia ao proprietário de agregar a venda das bebidas à performance tão carismática. Tudo isso ao mesmo tempo. O fato é que o flamenco foi virando meio de ganho, trabalho.

Mas com certeza não devia ter espaço de apresentação para tantos: quem é que não queria ganhar dinheiro cantando e dançando? Quem é que não quer ficar rico jogando bola? Imagina encher o banco de dinheiro batendo uma pelada!! Maravilhoso. Aí vem a realidade e começa a selecionar: um porque é mais talentoso, outro porque é amigo do dono da cueva, outro por isso ou por aquilo. E como até hoje artista ganha muito mal, imagino que naquele tempo o cachê devia ser uma desgraça.

Também imagino que uma platéia de leigos foi se apaixonando por aquela arte, e muitos nessa platéia quiseram APRENDER a fazer aquilo. Provavelmente os ciganos deram risada ao pensar que pessoas nascidas fora de sua cultura pudessem aprender o flamenco, mesmo porque embora tenham ensinado gerações e gerações a sua arte, foi uma didática espontânea, inconsciente muitas vezes, como quem ensina a segurar um garfo para comer, ou brincar de pique para se divertir.

Como terá nascido a didática da arte flamenca, fora do meio familiar, do ambiente cultural? Como os artistas flamencos começaram a “se distanciar” de sua arte para tentar transformá-la em técnica?

Para ensinar alguém a andar, se for ensino consciente, é preciso destrinchar o movimento, saber por onde começa como se desenvolve e onde termina. Se primeiro estico a perna para dar o passo ou se jogo meu tronco contra o chão e o passo surge depois para amortecer uma suposta queda. Não pensamos nisso porque não precisamos, mas ao ensinar uma criança precisamos refletir e perceber como fazemos para só então ensinar.

Talvez então o que para um flamenco era tão espontâneo que ele nem sabia onde começava e onde terminava, teve que ser desmembrado, repartido.

Como não sei de fato o que aconteceu, sou obrigada a observar o ensino hoje para tentar revelar essa história. O curioso é que uma aula de flamenco atual (e já há muitos anos) acontece de frente para um espelho, seqüências de movimentos destacados do baile formam exercícios de treinamento. Essa estrutura que conhecemos, em minha opinião/imaginação, não parece coerente com o “universo” do flamenco, tão caótico (porque o caos é sua fonte dramática), tão espontâneo, tão sentimental, indisciplinado, ou melhor, desregrado.

O que aconteceu nessa passagem entre as cuevas, as juergas, a vida noturna e desregrada, até chegar às assépticas salas de aula, narcisistas e espelhadas, com seqüências repetitivas e disciplinadas dos movimentos retorcidos?

Pode ter acontecido, mas é difícil imaginar que essa estrutura tenha sido criada pelo próprio artista flamenco; parece que houve uma interferência externa a essa cultura, que trouxe modelos e informações diferentes. O próprio conceito de dança e sentido ou objetivo de dançar se modificou. O flamenco sofreu o mesmo processo que muitas outras danças enfrentaram.
Faço questão de resgatar o antigo e fundamental livro de Roger Garaudy, “Dançar a Vida” que reflete: “a dança, que sempre falou do amor, da luta, da morte e das coisas depois da morte, degenerou, então, num academicismo e num virtuosismo sem nenhum significado humano”. Escrito há 30 anos sobre a história de todas as danças, parece descrever a situação do flamenco atual.

Garaudy acusa que a “codificação” da dança, como em outras artes, gerou um “academicismo” e uma esclerose: “A perfeição técnica tornou-se um fim em si mesmo: o essencial, a partir daí, era a clareza, o equilíbrio e a ordem, mesmo que isto levasse à rigidez. A arte se separava da vida e de sua expressão.”

Talvez eu não devesse dizer mais nada, pois já está tudo dito. Mas vou redundar então.

Quando afastamos a arte da vida, além dela perder sua função (terapêutica, social, cultural, espiritual, expressiva, energética, ética, .......) ela se transforma no próprio instrumento de alienação do indivíduo: a obsessão pelo perfeccionismo técnico é apenas a expressão do esvaziamento de sentido, do separatismo entre alma e corpo, entre matéria e espírito, entre interior e exterior. A distinção entre arte e vida é a morte da própria arte para torná-la bem de consumo, produto. Uma “evasão da realidade”, nomeou Garaudy.

Quem diria que uma expressão social de revolta e rebeldia, um manifesto libertário se transformaria na própria prisão? O perigo do afastamento da expressão artística de seu sentido original é torná-la instrumento de manipulação, alienação e passividade. Embotamento da criatividade.

Não tem como esquecer que a dança clássica é o exemplo modelar desse processo: a busca quase atlética pela perfeição técnica, de um sistema de movimentos anti-orgânico, anti-expressivo, anti-espontâneo, anti-criativo, resultou numa dança elitista, distante das ruas, dos povos, sem etnias, sem humanidade, porém bela. Uma busca pela forma, pela execução, pelo resultado a qualquer custo, à custa da despersonalização do artista. O Belo acima do Humano. O ideal acima da carne!

Um quadro que deveria ser completamente diferente do universo flamenco: feio, descabelado, retorcido de roupas rasgadas em peles suadas, em corpos alcoolizados cheirando a fumaça. Como será que conseguiram domesticar o flamenco a esse ponto? Não que eu seja contrária ao desenvolvimento técnico de nada. Ou será que sou?

Foi por medo dessa domesticação que o povo flamenco resistiu tanto em compartilhar sua arte? Mas está aí Paco de Lucia para provar que compartilhar gera transformação sim, mas essa mudança pode ser para aprofundar e não necessariamente para reduzir o sentido da arte. O que pode ser domesticado, “tecnicizado”, e o que deve permanecer selvagem? Garcia Lorca para nos salvar do dilema já deixou prescrito a teoria do duende: há um mistério que não pode ser domado! Mesmo no auge da técnica existe algo que não pode ser controlado.

Mas o baile, a expressão da dança no flamenco, parece ter herdado o conceito do ballet para sua didática. Afirmo isso porque comparo o ensino do flamenco ao ensino do teatro, da arte dramática.

O ator é também um dançarino, embora os bailarinos detestem ouvir isso. É um artista cênico que, apesar de utilizar a palavra, é também a sua arte a arquitetura do gesto. Levar um lenço ao nariz, numa cena, exige técnica e refinamento do movimento. Não é porque não seja um gesto atlético, ou acompanhado de música (no caso do Teatro Nô, é), ou porque se assemelha ao gesto cotidiano, que não seja dança, já diria Maguy Marin. Levar um lenço ao nariz de uma personagem da aristocracia russa do século passado é absolutamente diferente de levar um lenço ao nariz de uma personagem do povo espanhol em plena guerra civil. Outra coreografia, outros pesos, ritmos, percursos. No entanto na preparação e formação de um ator não existem salas com espelhos, nem seqüências repetitivas de “assoamentos” de nariz. O movimento é criado, desenhado e depois executado em total relacionamento com os motivos interiores que o acompanham. Não necessariamente “a partir” desses motivos (como muitos pensam ser o teatro), mas “em relacionamento com”. Existem várias discussões dentro desta discussão que vou conscientemente evitar.

O que trago em questão (há anos) é que a ausência do espelho permite ao ator o desenvolvimento da auto-imagem, da propriocepção do movimento, do contato constante com a dimensão interna da expressividade (coloque um espelho diante de um ator e ele ficará totalmente perdido na sua seqüência) estimulando a autenticidade e espontaneidade, ao invés da repetição e despersonalização da atuação. Estranho é que estes elementos deveriam ser os fatores principais desenvolvidos por dançarinos, mas não são.

O flamenco de hoje não é o flamenco de ontem, e se um dia os espelhos eram absurdos para didática flamenca, hoje é fato! Se no passado os gitanos não compravam metrônomos, hoje são necessários; flamenco tem técnica, merece treinamento exaustivo, repetitivo, quase atlético. Mas não se faz disso, ou se tornará um estilo de dança, que é o que vem acontecendo.
Não se podem evitar os duendes!!

Outro fator que pode ter colaborado para a atual didática na dança flamenca é a “mística” do duende. Nas história dessa arte sempre houve o reconhecimento de que apesar do aspecto técnico da execução, há um aspecto expressivo que foge ao controle da técnica. Algo que aparece em alguns momentos, em algumas pessoas, sem que se possa determinar esse surgimento, e que quando acontece o flamenco se torna “mais flamenco”. Há uma subjetividade na definição do que é o flamenco que não se restringe ao conjunto de regras e fatores. Há um “que” imprevisível e intangível que faz daquela execução mais “perfeita” como arte flamenca.
O flamenco é além de uma técnica, de uma estética, de um estilo, é uma capacidade. Além de ter talento há que se ter duende para ser perfeitamente flamenco.

E como o duende é quem escolhe o artista e não o inverso cabe ao humano aperfeiçoar-se apenas. Talvez essa inevitabilidade tenha dado ao ensino da arte flamenca (e aqui cabe também o toque e o cante), um caráter estritamente técnico-estético.Sua expressividade ou dramaticidade vai apenas até os limites da teatralidade. Pode o artista flamenco estudar a arte dramática até onde lhe certifique a capacidade de lidar com emoções ou interpretar personagens.
Mas mesmo sem ainda adentrarmos nas questões do duende dentro da didática, já poderíamos destacar que a importância dessa dramaticidade foi totalmente colocada de lado na didática atual. Mesmo que pudéssemos compreender a impossibilidade de acessar a obscuridade que envolve essa capacidade misteriosa, ainda sim é muito objetiva a técnica para interpretação dramática dos bailes ou cantes, que ficam à mercê da intuição dos executores. E minha experiência no ensino da interpretação para flamencos me comprovou que o desconhecimento do conceito de duende, ou um entendimento muito místico de sua existência, atrapalhou o desenvolvimento da teatralidade no ensino da arte flamenca.

O flamenco é uma dança-teatro por excelência. Seus bailes não são apenas arquiteturas abstratas da expressão humana, mas gestus sociais e claramente concretos do comportamento humano. Existe uma dramaturgia em todo baile, carregada de emoções e personagens, com histórias e percursos dramáticos. A cena flamenca não difere de várias formas de artes cênicas do oriente, onde teatro e dança não se distinguem com tanta veemência como no ocidente. O teatro Nô, por exemplo, embora diferente do flamenco por ser completamente codificado e normativo, é executado por uma ator/bailarino, enquanto um cantor entoa seu poema e um grupo de músicos acompanha com marcações determinantes na execução. Esse relacionamento intrínseco entre as partes para a realização da personagem-drama está presente.

Porém para o artista flamenco original, essa dramaticidade não é estudada pois deve se dar espontaneamente. Entendo por um lado que essa atitude está mais relacionada com a falta de conhecimento técnico da arte dramática que até certo momento de sua história era considerada espontânea mesmo (ou ator tinha talento para incorporar sua personagem ou não tinha talento). Hoje e já algum tempo sabemos as diversas possibilidades de treinamento do ator para seu desempenho.

Por outro lado a idéia de espontaneidade é um dos pontos cruciais da arte flamenca a meu ver. É nela que reside o duende, é nela que reside a autenticidade do movimento, é nela que reside a chave para integrar vida e arte!!!

Sobre a didática do flamenco e a espontaneidade, farei minha reflexão em outra improvisação.....




Nenhum comentário:

Postar um comentário