Minha reflexão não está baseada em nenhum estudo científico, em
nenhum estudo antropológico, em nenhuma pesquisa de nenhuma natureza. Este blá
blá blá que vou propor está baseado na minha imaginação, na minha forma
reflexiva de observar a realidade atual do ensino do flamenco, em particular da
dança, para supor sua gênese, como se deu essa história.
(Aliás, a história é sempre uma
visão imaginativa de uma realidade suposta que se localiza num tempo que não
existe e que chamamos de “passado”. Preferimos quando essa produção criativa
tenta se sustentar em estudos, objetos e pesquisas que nos aproximem dos fatos
desse passado, mas a interpretação que fazemos desses objetos e “provas” é
ainda pura imaginação.)
Vou seguir com meu deleite.
Vou supor então que num dado
momento o flamenco já existia: alguns grupos sociais cultivavam (no sentido de
Cultura) essa forma de expressão, essa forma de diversão. Em vários cantos da
Andalucia, ao mesmo tempo, foram pipocando expressões que se entrecruzavam e se
transformavam até gerar uma “coisa” que já tinha um corpo próprio que se
denominou: o flamenco.
Detalhes dessa história à parte
imagino ainda que, diante da pobreza e da necessidade, alguns nesses grupos
entenderam que podiam transformar isso em “trabalho”, ou porque eram talentosos
e paravam a festa, passaram a receber um copinho de xerez de graça, depois uma
pratito de paella. Então passaram a ser convocados para alegrar a galera, ou
talvez tenham ido até uma cueva e deram idéia ao proprietário de agregar a
venda das bebidas à performance tão carismática. Tudo isso ao mesmo tempo. O
fato é que o flamenco foi virando meio de ganho, trabalho.
Mas com certeza não devia ter
espaço de apresentação para tantos: quem é que não queria ganhar dinheiro
cantando e dançando? Quem é que não quer ficar rico jogando bola? Imagina
encher o banco de dinheiro batendo uma pelada!! Maravilhoso. Aí vem a realidade
e começa a selecionar: um porque é mais talentoso, outro porque é amigo do dono
da cueva, outro por isso ou por aquilo. E como até hoje artista ganha muito
mal, imagino que naquele tempo o cachê devia ser uma desgraça.
Também imagino que uma platéia
de leigos foi se apaixonando por aquela arte, e muitos nessa platéia quiseram
APRENDER a fazer aquilo. Provavelmente os ciganos deram risada ao pensar que
pessoas nascidas fora de sua cultura pudessem aprender o flamenco, mesmo porque
embora tenham ensinado gerações e gerações a sua arte, foi uma didática
espontânea, inconsciente muitas vezes, como quem ensina a segurar um garfo para
comer, ou brincar de pique para se divertir.
Como terá nascido a didática da
arte flamenca, fora do meio familiar, do ambiente cultural? Como os artistas
flamencos começaram a “se distanciar” de sua arte para tentar transformá-la em
técnica?
Para ensinar alguém a andar, se
for ensino consciente, é preciso destrinchar o movimento, saber por onde começa
como se desenvolve e onde termina. Se primeiro estico a perna para dar o passo
ou se jogo meu tronco contra o chão e o passo surge depois para amortecer uma
suposta queda. Não pensamos nisso porque não precisamos, mas ao ensinar uma
criança precisamos refletir e perceber como fazemos para só então ensinar.
Talvez então o que para um
flamenco era tão espontâneo que ele nem sabia onde começava e onde terminava,
teve que ser desmembrado, repartido.
Como não sei de fato o que aconteceu, sou obrigada a
observar o ensino hoje para tentar revelar essa história. O curioso é que uma
aula de flamenco atual (e já há muitos anos) acontece de frente para um espelho,
seqüências de movimentos destacados do baile formam exercícios de treinamento.
Essa estrutura que conhecemos, em minha opinião/imaginação, não parece coerente
com o “universo” do flamenco, tão caótico (porque o caos é sua fonte
dramática), tão espontâneo, tão sentimental, indisciplinado, ou melhor,
desregrado.
O que aconteceu nessa passagem entre as cuevas, as
juergas, a vida noturna e desregrada, até chegar às assépticas salas de aula,
narcisistas e espelhadas, com seqüências repetitivas e disciplinadas dos
movimentos retorcidos?
Pode ter acontecido, mas é difícil imaginar que essa
estrutura tenha sido criada pelo próprio artista flamenco; parece que houve uma
interferência externa a essa cultura, que trouxe modelos e informações
diferentes. O próprio conceito de dança e sentido ou objetivo de dançar se
modificou. O flamenco sofreu o mesmo processo que muitas outras danças
enfrentaram.
Faço questão de resgatar o antigo e fundamental livro
de Roger Garaudy, “Dançar a Vida” que reflete: “a dança, que sempre falou do amor, da luta, da morte e das coisas
depois da morte, degenerou, então, num academicismo e num virtuosismo sem
nenhum significado humano”. Escrito há 30 anos sobre a história de todas as
danças, parece descrever a situação do flamenco atual.
Garaudy acusa que a “codificação” da dança, como em
outras artes, gerou um “academicismo” e uma esclerose: “A perfeição técnica tornou-se um fim em si mesmo: o essencial, a partir
daí, era a clareza, o equilíbrio e a ordem, mesmo que isto levasse à rigidez. A
arte se separava da vida e de sua expressão.”
Talvez eu não devesse dizer mais nada, pois já está
tudo dito. Mas vou redundar então.
Quando afastamos a arte da vida, além dela perder sua
função (terapêutica, social, cultural, espiritual, expressiva, energética,
ética, .......) ela se transforma no próprio instrumento de alienação do
indivíduo: a obsessão pelo perfeccionismo técnico é apenas a expressão do
esvaziamento de sentido, do separatismo entre alma e corpo, entre matéria e
espírito, entre interior e exterior. A distinção entre arte e vida é a morte da
própria arte para torná-la bem de consumo, produto. Uma “evasão da realidade”, nomeou Garaudy.
Quem
diria que uma expressão social de revolta e rebeldia, um manifesto libertário
se transformaria na própria prisão? O perigo do afastamento da expressão
artística de seu sentido original é torná-la instrumento de manipulação,
alienação e passividade. Embotamento da criatividade.
Não tem como esquecer que a dança clássica é o exemplo
modelar desse processo: a busca quase atlética pela perfeição técnica, de um
sistema de movimentos anti-orgânico, anti-expressivo, anti-espontâneo,
anti-criativo, resultou numa dança elitista, distante das ruas, dos povos, sem
etnias, sem humanidade, porém bela. Uma busca pela forma, pela execução, pelo
resultado a qualquer custo, à custa da despersonalização do artista. O Belo
acima do Humano. O ideal acima da carne!
Um quadro que deveria ser completamente diferente do
universo flamenco: feio, descabelado, retorcido de roupas rasgadas em peles
suadas, em corpos alcoolizados cheirando a fumaça. Como será que conseguiram
domesticar o flamenco a esse ponto? Não que eu seja contrária ao
desenvolvimento técnico de nada. Ou será que sou?
Foi por medo dessa domesticação que o povo flamenco
resistiu tanto em compartilhar sua arte? Mas está aí Paco de Lucia para provar
que compartilhar gera transformação sim, mas essa mudança pode ser para
aprofundar e não necessariamente para reduzir o sentido da arte. O que pode ser
domesticado, “tecnicizado”, e o que deve permanecer selvagem? Garcia Lorca para
nos salvar do dilema já deixou prescrito a teoria do duende: há um mistério que
não pode ser domado! Mesmo no auge da técnica existe algo que não pode ser
controlado.
Mas o baile, a expressão da dança no flamenco, parece
ter herdado o conceito do ballet para sua didática. Afirmo isso porque comparo
o ensino do flamenco ao ensino do teatro, da arte dramática.
O ator é também um dançarino, embora os bailarinos
detestem ouvir isso. É um artista cênico que, apesar de utilizar a palavra, é
também a sua arte a arquitetura do gesto.
Levar um lenço ao nariz, numa cena, exige técnica e refinamento do movimento.
Não é porque não seja um gesto atlético, ou acompanhado de música (no caso do
Teatro Nô, é), ou porque se assemelha ao gesto cotidiano, que não seja dança,
já diria Maguy Marin. Levar um lenço ao nariz de uma personagem da aristocracia
russa do século passado é absolutamente diferente de levar um lenço ao nariz de
uma personagem do povo espanhol em plena guerra civil. Outra coreografia,
outros pesos, ritmos, percursos. No entanto na preparação e formação de um ator
não existem salas com espelhos, nem seqüências repetitivas de “assoamentos” de
nariz. O movimento é criado, desenhado e depois executado em total relacionamento com os motivos
interiores que o acompanham. Não necessariamente “a partir” desses motivos
(como muitos pensam ser o teatro), mas “em relacionamento com”. Existem várias
discussões dentro desta discussão que vou conscientemente evitar.
O que trago em questão (há anos) é que a ausência do
espelho permite ao ator o desenvolvimento da auto-imagem, da propriocepção do
movimento, do contato constante com a dimensão interna da expressividade
(coloque um espelho diante de um ator e ele ficará totalmente perdido na sua seqüência)
estimulando a autenticidade e espontaneidade, ao invés da repetição e
despersonalização da atuação. Estranho é que estes elementos deveriam ser os
fatores principais desenvolvidos por dançarinos, mas não são.
O flamenco de hoje não é o flamenco de ontem, e se um
dia os espelhos eram absurdos para didática flamenca, hoje é fato! Se no
passado os gitanos não compravam metrônomos, hoje são necessários; flamenco tem
técnica, merece treinamento exaustivo, repetitivo, quase atlético. Mas não se
faz disso, ou se tornará um estilo de dança, que é o que vem acontecendo.
Não se podem evitar os duendes!!
Outro fator que pode ter colaborado para a atual
didática na dança flamenca é a “mística” do duende. Nas história dessa arte
sempre houve o reconhecimento de que apesar do aspecto técnico da execução, há
um aspecto expressivo que foge ao controle da técnica. Algo que aparece em
alguns momentos, em algumas pessoas, sem que se possa determinar esse
surgimento, e que quando acontece o flamenco se torna “mais flamenco”. Há uma
subjetividade na definição do que é o flamenco que não se restringe ao conjunto
de regras e fatores. Há um “que” imprevisível e intangível que faz daquela
execução mais “perfeita” como arte flamenca.
O flamenco é além de uma técnica, de uma estética, de
um estilo, é uma capacidade. Além de ter talento há que se ter duende para ser
perfeitamente flamenco.
E como o duende é quem escolhe o artista e não o
inverso cabe ao humano aperfeiçoar-se apenas. Talvez essa inevitabilidade tenha
dado ao ensino da arte flamenca (e aqui cabe também o toque e o cante), um
caráter estritamente técnico-estético.Sua expressividade ou dramaticidade vai
apenas até os limites da teatralidade. Pode o artista flamenco estudar a arte
dramática até onde lhe certifique a capacidade de lidar com emoções ou
interpretar personagens.
Mas mesmo sem ainda adentrarmos nas questões do duende
dentro da didática, já poderíamos destacar que a importância dessa
dramaticidade foi totalmente colocada de lado na didática atual. Mesmo que
pudéssemos compreender a impossibilidade de acessar a obscuridade que envolve
essa capacidade misteriosa, ainda sim é muito objetiva a técnica para
interpretação dramática dos bailes ou cantes, que ficam à mercê da intuição dos
executores. E minha experiência no ensino da interpretação para flamencos me
comprovou que o desconhecimento do conceito de duende, ou um entendimento muito
místico de sua existência, atrapalhou o desenvolvimento da teatralidade no
ensino da arte flamenca.
O flamenco é uma dança-teatro por excelência. Seus
bailes não são apenas arquiteturas abstratas da expressão humana, mas gestus sociais
e claramente concretos do comportamento humano. Existe uma dramaturgia em todo
baile, carregada de emoções e personagens, com histórias e percursos dramáticos.
A cena flamenca não difere de várias formas de artes cênicas do oriente, onde
teatro e dança não se distinguem com tanta veemência como no ocidente. O teatro
Nô, por exemplo, embora diferente do flamenco por ser completamente codificado
e normativo, é executado por uma ator/bailarino, enquanto um cantor entoa seu
poema e um grupo de músicos acompanha com marcações determinantes na execução.
Esse relacionamento intrínseco entre as partes para a realização da
personagem-drama está presente.
Porém para o artista flamenco original, essa
dramaticidade não é estudada pois deve se dar espontaneamente. Entendo por um
lado que essa atitude está mais relacionada com a falta de conhecimento técnico
da arte dramática que até certo momento de sua história era considerada espontânea
mesmo (ou ator tinha talento para incorporar sua personagem ou não tinha
talento). Hoje e já algum tempo sabemos as diversas possibilidades de
treinamento do ator para seu desempenho.
Por outro lado a idéia de espontaneidade é um dos
pontos cruciais da arte flamenca a meu ver. É nela que reside o duende, é nela
que reside a autenticidade do movimento, é nela que reside a chave para
integrar vida e arte!!!
Sobre a didática do flamenco e a espontaneidade,
farei minha reflexão em outra improvisação.....
Nenhum comentário:
Postar um comentário