quinta-feira, 31 de maio de 2012

Contra as leis de incentivo à cultura de Zé Rodrix

Há quem tenha se espantado com minha posição contraria às leis de incentivo, Rouanet, etc..., me pedindo explciações de forma muito intensa. Explico, mas devo começar dizendo que a minha atitude anti-Lei Rouanet é uma atitude pessoal, fundamentada na Ética mais comezinha, que tem me guiado na maior parte da minha vida adulta, e sem nenhuma ligação com qualquer movimento partidário, ideológico, político ou mesmo cansado. Também nunca fiz uso de nenhum privilégio, lei ou verba pública, por ser um crente absoluto que a minha arte é problema meu e, se eu não estiver disposto a empenhar a minha própria alma na sua realização, ninguém poderá fazê-lo por mim. Da mesma forma, não pretendo em hipótese nenhuma fazer uso de dinheiro público no financiamento daquilo que é minha responsabilidade pessoal.

Durante toda a minha vida acreditei, como acredito até hoje, que o dinheiro de TODOS não pode e não deve ser usado no financiamento da aventura pessoal de alguns, a não ser que o resultado do uso deste dinheiro seja devolvido gratuitamente para o proprietário do dinheiro, o povo, na sua totalidade. A crueldade política que leva o Estado brasileiro a repassar para o mercado a responsabilidade sobre o uso dos impostos é extremamente daninha, a meu ver, e o próprio mercado tem-se visto em palpos de aranha para não apenas realizar mas também justificar o seu papel de substituto do Estado, este Leviatã que apenas chancela as escolhas que o mercado fizer sobre o uso do dinheiro público, dando seu aval para a renúncia fiscal que está no fundo de tudo isso.

A renúncia fiscal começou na Inglaterra vitoriana, quando o Imposto de Renda começou a ser cobrado dos mais ricos, e estes, insatisfeitos com isto, propuseram que o dinheiro que deviam fosse usado no erguimento de necessidades culturais para o povo inglês. O governo, ele mesmo formado por muitos desses abonados, encampou a proposta, e o dinheiro dos impostos, através da renúncia fiscal que o governo aceitou, começou a ser usado para erguer monumentos e financiar eventos culturais. O mais estranho é que estes monumentos culturais só serviam aos donos do dinheiro, isto é, aos mais abonados, para quem o dinheiro dos impostos passou a erguer museus, teatros, universidades, sem que o povo, depositário legal do dinheiro devido, tivesse nisto qualquer vantagem. Esta crueldade fiscal se espalhou pelo mundo, por interessar profundamente às classes dominantes, e no Brasil, a partir dos contubérnios inexplicáveis entre Estado e artistas iniciados durante a DItadura Militar, foi-se criando entre nós a crença inabalável de que o dever do Estado é sustentar a Cultura. Sendo isto verdade, pergunto se a Cultura tem mesmo sido sustentada, ou o que o Estado sustenta são manifestações artísticas que, como bem o diz Luis Carlos Barreto, "são formas artísticas e comerciais de usar aspectos da cultura nacional, coisa bem diferente da Cultura".

Baseando-se nisso, hoje tudo corre o risco de ser sustentado pelas verbas públicas, bastando para isso pespegar-se-lhe o carimbo de "Manifestação Cultural" e correr atrás de um patrocínio. Não tem havido muito cultura nestas realizações, mas sim uma maior ou menor qualidade artística, que pode ou não dar lucro, na exata medida do interesse que desperte em seu público. A distorção que nos leva a chamar de Cultura qualquer ação artística, tenha ela ou não fundamento e/ou valor cultural, é o que sustenta este financiamento ( a meu ver ) desonesto a que alguns têm acesso, em detrimento de todos, até porque raréssmos são os que conseguem ter acesso às verbas ou ao resultado de sua aplicação.

O sistema de renúncia fiscal que está por trás das Leis de Incentivo Cultural, portanto, é incorreto em vários sentidos, não apenas no privilégio que cria, dividindo os brasileiros entre merecedores e não-merecedores de financiamento público, mas também na forma como inverte os papéis do Estado e do mercado, transformando o mercado em distribuidor de dinheiro público e o Estado em financiador de empreendimentos particulares. Houvesse seriedade de propósitos, cada parte estaria fazendo seu verdadeiro papel, e não se substituindo no processo, gerando incompetência, privilégio, mal-estar e perpetuação de uma classe específica no acesso ao dinheiro público.

Na verdade, todos se privilegiam deste projeto: os artistas, que conseguem financiamento sem custo para suas obras, realizando-as sem que tenham necessidade do aval do público, já que nascem completamente pagos e ainda podem, graças às bilheterias, maximizar seu lucro pessoal a partir do dinheiro público que lhes foi doado: o mercado, que em vez de investir dinheiro verdadeiro, se privilegia do imposto que deveria pagar, direcionando-o às obras artísticas que melhor retorno mercadológico lhe derem e usando-o como se fosse investimento em si mesmo: e o Estado, que se faz de mecenas para os que lhe interessam pelos mais diversos motivos, usando para isso o dinheiro público, sem determinar com clareza quem é o dono das verbas investidas, mas permitindo que os que chancela a partir da escolha do mercado se tornem depositários do direito de ganhar sem investir.

Hoje em dia os produtores"culturais" não são verdadeiramente pessoas ou empresas que invistam de si ou do seu na realização de obras artísticas, mas sim aqueles que, conhecendo os meandros das leis de incentivo e sabendo de onde tirar dinheiro e a quem oferecer seus produtos, têm acesso a este tipo de dinheiro público como forma de iniciar uma atividade sem custo, tornando-se daí em diante os donos dos lucros que este investimento lhes der. O mais interessante é que todas as partes do processo, Estado, mercado e artistas, fazem questão de nos informar o quanto conseguiram e de que maneira este dinheiro está sendo gasto, MAS NUNCA NOS INFORMAM O QUANTO LUCRARAM COM ELE. Da mesma forma, mesmo tendo lucrado o suficiente para justificar uma nova produção, desta vez com seu próprio dinheiro, acostumam-se ao jogo e em breve novamente recorrem ao dinheiro de renúncia fiscal para um novo "investimento" sem ônus, lucrando ainda mais com ele. Ou seja: socialismo de Estado na hora do investimento, capitalismo selvagem na hora do lucro.
Ou isto se torna passível de ser praticado por TODOS, que são os donos do dinheiro publico, ou permaneceremos perpetuando este privilégio sem qualquer sentido ético: quando determinamos fontes de dinheiro exclusivas para investimento nestes produtos ditos "culturais", também estamos determinando um grupo específico de agentes que farão uso dele, exatamente aqueles que, graças a seus nomes e talentos, darão ao mercado o melhor retorno possível. Ora, havendo possibilidade de retorno por parte destes nomes e talentos, deve existir público suficiente para, por sua própria vontade, sustentar-lhes as ações e artes: se não existe este publico, seus nomes e talentos decerto não são suficientes para merecer os financiamentos a que tem feito jus, privilegiando-se do acesso ao dinheiro público mas nunca revelando o quanto ele rende quando se torna privado.

Um contra-senso, um paradoxo, um Catch 22. Os que defendem a continuidade desta política de investimento público para gerar lucro privado, sempre serão os que, graças a seu nome e talento, ocupam hoje a posição de determinadores de objetivo, ou seja, tornaram-se aqueles que dizem para quem o dinheiro deve ser dado. Interessante posição, mas a meu ver indigna, porque serve apenas para perpetuar o uso incorreto do dinheiro público, tornando-se plataforma de poder pessoal na distribuição das verbas e na definição do que seja ou não "cultura". Em países mais civilizados o subsídio a estas formas de arte sempre inclui sua distribuição gratuita para o público, porque no investimento existe a exigência de devolução do que é publico a seu verdadeiro dono: ninguém cobra entrada em espetáculos publicamente patrocinados. Aqui, tudo se cobra, e nada se devolve.
Esta, a meu ver, seria a única justificativa para o investimento de renúncia fiscal nas artes: que seus resultados fossem devolvidos ao público ( seu financiador ) de forma gratuita, ampliando o acesso a elas em vez de privilegiar este acesso apenas aos que, estando em classes melhor aquinhoadas financeiramente, possam pagar novamente por um produto artístico que já financiaram com o dinheiro de seus impostos. O público que não dispõe de dinheiro para pagar a entrada, e que é a grande maioria, já pagou antecipadamente, através de seu imposto, mas nunca terá acesso aos produtos que seu dinheiro financiou. Crueldade fiscal e ( aí sim) cultural, porque quem verdadeiramente necessita e merece arte é exatamente quem não tem acesso a ela, e o dinheiro público, por definição, deve ser usado primordialmente na satisfação desta necessidade absoluta.

Paulo Autran sempre dizia ter saudade do tempo em que o investimento numa produção teatral era feito a partir de dinheiro real levantado em um banco, como empréstimo, e pago com os frutos da bilheteria, da qual todos dependiam. Hoje em dia, graças a Leis de Incentivo, o resultado de qualquer produção não tem mais importância: na maior parte das vezes, o lucro dos "produtores" já está garantido pelo investimento público, e o resultado da bilheteria, se houver, só serve como "plus', nunca sendo usado nem no ressarcimento público ao verdadeiro dono do dinheiro, nem no reinvestimento na própria obra. 

Explicar o uso de leis de incentivo pela necessidade, sinto muito, não me convence: quem quer abrir um circo precisa pelo menos comprar a lona. Se não tiver lona, não tem circo. Da mesma forma a arte brasileira; se não existe por parte dos artistas a capacidade de realizar suas obras, que não as realizem. Assim é a vida, e cada um deve se responsabilizar pela sua própria, sem impor esta responsabilidade sobre nada nem ninguém. Hoje em dia, não satisfeitos com a compra da lona, já pedem que o governo compre as entradas, para que não apenas o investimento mas até o lucro de bilheteria seja certo e seguro, como se o risco da arte não fosse mais um ingrediente essencial para a sua existência. A desculpa? " Precisamos criar mercado e público...". Não vão consegui-lo assim: só terão cada vez mais obras sem interesse público sendo pagas com dinheiro estatal, todos felizes, mas sem nenhum resquício de arte.

Como em qualquer país civilizado, existem a arte subsidiada, com objetivos culturais específicos, e a arte privada, nascida de investimentos privados e com o objetivo claro do lucro honesto que conseguir ter: no Brasil, graças a esta prática da confusão entre mercado e Estado, e ao privilégio dos que nela se perpetuam, as duas se confundem, havendo cada vez menos investimento real em arte, já que todos preferem ganhar sem investir. Ah! se os que hoje distribuem dinheiro público através de suas empresas soubessem do lucro possível que uma produção artística pode gerar! É certamente um mercado tão arriscado quanto a Bolsa de Valores, mas quando rende, rende muito mais que esta, sendo este lucro o único motivo possível para que tantos profisisonais da área nela permaneçam, mesmo repetindo o tempo todo que seu oficio é mau em termos de retorno financeiro.

O Brasil tornou-se, nos últimos anos, uma meca para investidores artísticos dos mais diversos tipos, que reconhecem em nosso público um mercado de imenso potencial para seus produtos, e tanto que a cada dia mais e mais empresas estrangeiras se fixam em nosso país para investir e ganhar dinheiro com suas produções artísticas em todos os níveis, sem precisar se privilegiar de incentivos culturais nem renúncias fiscais, reconhecendo o potencial comercial da arte em nosso país. Porque isso é impossível para investidores nacionais? Simplesmente porque estes investidores não tomam conhecimento das possibilidades de lucro que um investimento em produtos artísticos pode dar, que costuma ser tão bom ou melhor que o investimento em produtos industriais ou no mercado de capitais. Se soubessem, haveria, como em qualquer parte do mundo, inúmeros investidores dispostos a colocar dinheiro REAL em produtos artísticos e até mesmo culturais, correndo com eles o mesmíssimo risco que correm com seus outros investimentos.

O equívoco, se houver, começa por nós, a classe artística, permanentemente dispostos a nos vender como mendigos inconscientes e irresponsáveis, exigindo de quem tem a esmola que nos sustentaria em indignidade e privilégio, arrastando pelo mundo nossas patéticas figuras de pobrezinhos, pedindo a qualquer momento "me dá um dinheiro aí". A meu ver, como tenho praticado durante toda a minha vida artística, nada melhor que um sócio financeiro que acredite em nosso projeto e o sonhe conosco, participando dele em todos os sentidos, tornando-se responsável não apenas pelos resultados mas também pela sua continuidade. 

O que o Brasil precisa hoje, nas artes e na cultura, é de investidores conscientes, para gerar público consciente, o que gerará uma arte cada vez mais consciente por parte dos artistas. Não existe nada melhor que a realidade dos fatos para gerar consciência e responsabilidade, e um mercado artístico verdadeiramente existente liberaria o dinheiro público para ser aplicado em áreas de importância cada vez maior: Educação, Saúde, Infra-estrutura, etc.. 

O que advogo é uma responsabilidade pessoal e de classe cada vez maiores: se não formos competentes o suficiente para sustentar nosso ofício de artistas, aglutinando em torno dele não apenas investidores que acreditem na sua realização mas também público que o sustente, nosso oficio nada vale, e seremos os eternos mendigos da Cultura, como temos sido, pedindo uma verbinha aqui, um patrociniozinho ali, um subsidiozinho acolá, exibindo nossa incompetência empresarial, esta que certamente prejudica em muito a nossa excelência artística, e sendo cada vez menos livres, porque as leis que estabelecem o uso de dinheiro público para a realização de obras artísticas acabam privilegiando apenas os interesses do Estado e do mercado, e nunca os verdadeiros interesses da arte e dos artistas.

Toda consciência significa liberdade, e a minha em nenhum momento, neste caso específico, tem o poder de mudar o sistema pelo qual os artistas tem conseguido suas verbas: eu inclusive, com minha recusa de participar simplifico-lhes a vida, porque sou menos um a tentar pegar a graninha da renúncia fiscal como investimento inicial em minha própria aventura. Da minha parte estarei sempre em busca de investidores reais e tão conscientes quanto eu, a partir dos quais se possa criar um verdadeiro mercado artístico nacional, como já houve, servindo ao público, como já servimos, e finalmente acrescentando à Cultura ( agora, sim!) a nossa contribuição claramente reconhecida e honestamente gerada, sem privilégios de classe nem uso indevido de dinheiro público.

Zé Rodrix


(texto escrito em 2007, autor falecido em 2009)










e nada mais.



Um comentário:

  1. Como sempre, muito lúcido o posicionamento do Zé Rodrix, com seu discurso questionador das benesses adquiridas por este esquema chamado renúncia fiscal. Não foi tocado no fato de que a indústria que patrocina lucra muito mais vezes enquanto só patrocina aqueles artistas que possuem visibilidade suficiente para registrarem sua marca.
    No entanto, observando os artistas independentes, ou mesmo a falência total da música como "interesse e orgulho nacional", vejo aquele mesmo jogo atribuído às esquerdas, que de tanto conceito, acabam se dissipando e não formulando e realizando sequer suas propostas, formando-se frágil junto à grande força econômica que sustenta este mecanismo que privilegia tão somente àqueles que já teriam bastante "estofo" para irem a seus investimentos em suas garras, cujo resultado, inegavelmente, é positivo.
    Assim, verdadeiramente à margem destas discussões conceituais, resta um bando de artistas que precisariam de incentivos (lembro-nos de que antes destes históricos incentivos fiscais, os artistas eram bancados pelos poderosos), acabaram os mecenas, acabou-se o respeito essencial a todas as formas de arte que nào sejam e estejam dentro do porte do que sabiamente diz o Luiz Carlos Barreto: "(...) formas artísticas e comerciais de usar aspectos da cultura nacional, coisa bem diferente da Cultura".
    Acredito no que dizem grandes artistas, de renome e posto certo, de que deveriam "levantar empréstimos" e fazer valer sua arte, pois já está posto e garantido.
    O que isto tudo me leva a crer é que a guerrilha artística que um dia discutiu e se posicionou como um sistema, entrou numa guerrilha dentro de si, enfraquecendo substancialmente todas as formas de poder de emersão de novos valores, fragilizando totalmente o ambiente artístico-cultural, não mercadológico, que deveria, sim, estar subsidiando tantos valores "da margem", e não aqueles que têm seu mercado devidamente estabelecido.
    Mas, adorei ler esta reflexão, que não conhecia, apesar de vários contatos com o pensamento do Rodrix.... E deixo registrado que a expressão dos artistas que se fincaram desde o boom inicial da indústria cultural não é o mesmo da realidade hoje, mas ratificando uma grande antipatia aos projetos daqueles que têm seu mercado. Estes podem fazer valer seu talento e ter seu público e seu devido retorno.
    Esta discussão me dá a exata dimensão do que aconteceu na música no país.
    Obrigado pelo post. Seguindo o blog
    Abraços

    ResponderExcluir