quarta-feira, 7 de março de 2012

O FLAMENCO NASCE DO ERRO

"quise trabajar sobre el error, para poder equivocarme"

ROCIO MOLINA em "Cuando las Piedras Vuelen"


Uma moça jovem numa arte carregada de ancestrais. Inovar no flamenco é quase um suicídio profissional, mas de quando em quando aparecem almas antigas em corpos novos para perturbar os que estão acomodados e tremer os pilares estabelecidos das convenções. Esse é o fogo flamenco: a rebeldia.

Israel Galván, Rocio Molina são dois exemplos dignos dessa responsabilidade. Resgatam para o flamenco sua profunda essência da improvisação, do inesperado. Não dessa improvisação empoeirada, pré-formatada que enterra o frescor da alma flamenca, não. Resgatam e renovam o sentido do duende lorquiano, aquele fogo invisível que se apodera do ser e o finca violentamente no momento presente. Não há passado e nem futuro para o momento flamenco e este é o sentido supremo da improvisação. Não há regras da ancestralidade que se sobreponham ao artista que sente. A ancestralidade não vem pelo sangue, não vem pela forma, só pode ser resgatada pela alma somada à inteligência.

A improvisação não é um jogo artificioso de estruturas pré-estabelecidas que são escolhidas de pronto pelo artista. A improvisação é muito mais do que isso: é o mergulho no vazio, onde as estruturas são esquecidas completamente para que ressurjam inesperadamente solicitadas pelo desespero da alma buscando expressão, pela sagacidade da inteligência buscando caminhos que resgatem à luz. No vazio de si mesmo, no vazio do próprio flamenco. Quem escolhe, quem cria, não é a mente do artista que ali atua apenas para lapidar o fluxo que jorra. A obra se cria através do artista, mas apenas naquele que aceita e compreende o sentido da CRIAÇÃO.

Criar é errar sempre porque é morrer.

Nosso conceito de criação é fruto de uma ideologia monoteísta e maniqueísta. Em nosso conceito de criação há o certo e o errado e o certo é bom e o errado ruim. O certo prevalece e é determinado por algum tipo de PODER. Mas a arte é por essência subversiva e quando se submete ao poder perde sua luz, desfalece suas forças. O falso artista, busca acertar porque caminha focado no resultado, no entretenimento; ou foca no interior e projeta sua fantasia. O artista criador foca nos dois mundos ao mesmo tempo, pois só assim se torna presente, e só quando consegue se colocar nesse “meio” dos mundos, que é o tempo presente, tem acesso ao inefável, ao inconsciente. Nesse “lugar” não há certezas, o belo é torto, a verdade está na morte, o caminho não existe antes dos pés.

A arte nasce do erro e no flamenco não é diferente: sua temática é o erro humano, nossas desmedidas, nossas deformidades. Não haveria cante flamenco num coro de anjos porque é uma arte humana essencialmente. E como podemos querê-la controlada se ela vibra no descontrole da alma rebelde? Como podemos querê-la simétrica se expressa as diferenças? Perseguir modelos não é criar, é, no máximo, representar. O flamenco não permite representação. Nenhuma arte permite, mas o flamenco se fez dessa transparência, dessa autenticidade.

O nosso flamenco tornou-se repetitivo e morto. O saudosismo de um tempo remoto dos grandes artistas paralisou o movimento natural autofágico que qualquer arte deve manter. Formas estabelecidas e reproduzidas, cansativas e de tão tediosas ficamos fascinados pela virtuose. Quando a arte se esvazia aplaudimos a superação do humano em performances de velocidade e contorcionismo como se flamenco fosse atletismo; atletismo da musculatura, atletismo da criatividade, atletismo do afeto...

A expressividade no flamenco tem que mudar para que sua essência continue florescendo. Os puristas se agarram às formas para manter as essências e isso não funciona. Esses novos flamencos agarram-se às suas inquietudes.

Uma geração de tentativas de mudança, da criação de novos caminhos deu as caras, nos estimulou, mas logo se perdeu nas próprias fantasias. Há que ter coragem para ser artista, mas há que ter muita coragem para ser flamenco. A coragem da pesquisa, a coragem de morrer sinceramente e não tentar mudar mantendo o status quo. Nem sempre é possível, mas é necessário.

A coragem de ser simplesmente quem se é realmente.


Linda entrevista com Rocio Molina: Rocio Molina


4 comentários:

  1. Texto magnífico, Dani. A todos nós, flamencos ou não, nos faz refletir, indagar, questionar, pensar!!!! Deuses, como precisamos parar para pensar sobre a nossa arte, sobre o nosso ego em favor dessa arte (e não à frente, mas atrás dela), sobre como nos comportamos e o que estamos realmente fazendo com o "nosso" flamenco. Suas palavras, minha amiga, são uma chicotada, e é por isso mesmo que eu te respeito e admiro tanto! Obrigada, gracias, obrigada... Beijos n'alma

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  2. Gracías querida, façamos a vida das nossas inquietações, né? Beijos recebidos!!

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  3. Dani,
    diferente da Alê, não sinto chicotada, sinto coceira, tipo a descrição da coceira do bicho de pé (se é como contam, não sei, inda num fiquei bichada do pé...)

    Em toda prática de Hatha Yoga, voltamos a morrer ('relaxamento' em Shavaasana; shava= cadáver; e pra dar coceira: http://www.yogaindaiatuba.com/2009/02/aritmetica.html), e na minha percepção, Hatha Yoga 'de raiz' e caprichado é uma dança onde a pessoa dança, é dançada e é platéia= observadora de si mesmo. Do mesmo jeito que o Flamenco morre, os aasanas=posturas de Yoga morrem também, quando feitos seguindo o manual (vira yoga-fitness).

    Por isso, na minha percepção Hatha Yoga+questão do Tempo = Flamenco.

    BeijOM,

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    1. Mafe, claro que vcs não poderiam ter a mesma reação pois tem responsabilidades diferentes na historia do flamenco brasileiro e cada um sabe onde lhe aperta o sapato, né? Apesar de não entender realmente o sentido da sua formula matemática, tanto concordo com a relação da yoga com o flamenco que em 97 quando eu ainda fazia a preparação corporal do grupo Raies (12 mulheres), eu aplicava hatha yoga nos trabalhos psico-físicos. É por aí. Bons tempos!!

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