Finalmente
estamos (não todos) adaptados aos dois mundos em que vivemos: o virtual e o não
virtual, que já não pode mais ser chamado de “real”, de tão real que o virtual
já se tornou; tão real que o mundo real agora é chamado de algo referente ao
outro mais recente, ou seja, a virtualidade é tão enredadora, por natureza, que
se tornou parte indissociável da nossa realidade. Que contrassenso! rs
A
resistência para que a virtualidade tomasse conta de nossas experiências de
vida foi muita, mas não havia como evitar uma vez que as “vantagens” são
necessárias.
Embora
importantes experiências da vida não possam ser realizadas/facilitadas pelo
computador (alimentar o corpo, respirar o ar, gerar filhos ou defecar) uma
infinidade de outras atividades são extremamente facilitadas pela rede.
As
atividades mentais são as que mais se beneficiaram com o advento e é inegável.
Para fazer uma pesquisa, por exemplo, tínhamos que ir até uma biblioteca,
solicitar a entrada, ir até um ficheiro enorme e dedilhar sequencias de fichas
para encontrar um dos livros que necessitamos; repetir o procedimento caso quiséssemos
pesquisar em vários livros, digamos uns dez. Andar então buscando letras e
números para encontrar as diferentes estantes, e diferentes prateleiras, e
diferentes sequencias de livros até localizar cada um pretendido, caso estejam
na prateleira e não tenham sido utilizados recentemente. Então carregar uma
pilha de livros nos braços, procurar um lugar para se sentar e esparramar
nossas coisas numa mesa, abrir vários livros e deixá-los abertos ao mesmo
tempo, ou ficar procurando em índices e páginas o que pretendemos. E se, lendo
um deles houver uma referência a outro autor que não tenhamos escolhido e que
for preciso ler naquele instante, então tudo se repete. O material que for
necessário ser recolhido para estudo aprofundado, então deve ser solicitada
permissão para cópia, levar, copiar, devolver.... A quantidade de tempo gasta
nessa atividade, com alcances limitados, e espaço requerido é enorme. Correndo
ainda o risco de naquela biblioteca vc ter apenas alguns dos livros necessários.
A
transformação que a internet trouxe, só para um exemplo como esse, é
incomparável, nos possibilitando pesquisar, refletir, produzir intelectualmente
numa velocidade (e profundidade) muito maior, ou talvez, na velocidade da mente
mesmo; o mundo virtual tem o alcance e velocidade da mente humana, ou se
aproxima dela. Embora para muitos a criação da internet tenha sido inspirada
pelo demônio, é possível perceber que ela foi imaginada pela própria
necessidade que a mente tem de corresponder à sua natureza ágil, volátil, e que
se vê numa matéria lenta e densa. E assim tudo em que a mente está implicada,
quase tudo que fazemos Homo Sapiens que somos, a vida da rede colabora a ponto
de não podermos mais viver sem ela. Isto porque ainda nem começamos a imaginar
o mundo explorando ao máximo essa invenção, pois o que parecia obra do diabo
vai ainda parecer criação divina!
O
que não quer dizer que nossa vida tridimensional vai desaparecer e todos
viveremos colados a computadores indefinidamente: isto é filme de ficção
cientifica fundamentalista. Embora realmente passemos muito mais tempo ligados às
maquinas, num futuro próximo teremos a possibilidade de realizar tanta coisa
pela net que sobrarão para nossa vida material apenas prazeres insubstituíveis
como tocar uma flor, molhar os pés num riacho, sentir o vento nos cabelos....
Atualmente
nossa vida física, que pareceria mais virtuosa pelo contato real com as coisas,
está na verdade nos escravizando. Quem tem tempo de tocar uma flor ou molhar os
pés no riacho? A esmagadora maioria de nós vive pressionada pela luta para
sobreviver, tendo que cumprir variadas funções totalmente substituíveis. E como
vivemos subordinados a essa estrutura consumista, imaginar substituir homens
por máquinas é desesperador, pois deve gerar fome e desemprego. Mas ao invés de
colocar pessoas em atividades completamente substituíveis por máquinas (que
serão sempre ativadas por pessoas em algum ponto, e se não forem melhor ainda)
não seria melhor modificar a distribuição material para que todos usufruíssem
igualmente das vantagens dessa substituição?
Teremos
cada vez mais que nos adaptar à vida nesses dois mundos não como dissociados,
mas como complementares porque esta adaptação é a que temos que fazer a
respeito de nós mesmos. Somos seres que para tomar um copo de água precisamos
nos mover no tempo e no espaço e empreender várias ações despendendo energia
interna e externa. Mas para imaginar esse mesmo copo não precisamos nem de
tempo nem de espaço nem de recursos externos, gastando uma energia que não se
consome.
Embora
o humano tenha reduzido ao máximo suas capacidades não físicas (também) pela
dificuldade de coordenar experiências tão distintas como entre matéria e não
matéria, não há como escapar dessa realidade: somos os extremos
simultaneamente, nossos corpos tem velocidade e alcances distintos da nossa
mente. Daí, inclusive, deriva a impressão de que nossos corpos aprisionam uma
experiência interna mais volátil. E desse sentimento de aprisionamento, do
julgamento dele, derivam muitos sofrimentos.
Os
opostos (corpo e mente) eram considerados discordantes em outros tempos, agora
são entendidos como complementares. E para ser complementar não pode haver nenhum tipo de hierarquia. Podemos enxergar essas diferenças com a
complementariedade que percebemos entre os mundos virtuais e não virtuais.
Podemos notar que a vida não virtual, apesar de menos apropriada para algumas
atividades, é mais apropriada para outras, e para cada coisa a sua qualidade,
sem o julgamento de ser bom ou ruim, certo ou errado, penoso ou não.
O
que está acontecendo à humanidade é apenas e sempre reflexo de si mesma, sem
demandas externas às suas possibilidades.
E
não bastasse toda mudança na experiência individual, ainda existe todo reflexo na
vida coletiva: nossa organização social vai se modificar total e
substancialmente. Problemas que não encontramos soluções até o momento vão se
dissolver com o advento e desenvolvimento da rede.
A
base da nossa organização social hoje é o trabalho, regido por uma economia de
consumo; e quando dizemos trabalho e economia de consumo não estamos nos referido
apenas às leis da organização social, mas às leis que regem até nossa estrutura
de pensamento e afetividade: trabalho e consumo!
A
ideia de trabalho será completamente transformada, no sentido de despender
energia para realizar uma ação. Ou, o trabalho é uma relação entre força e
deslocamento. A capacidade do humano de modificar a realidade/natureza impondo
sua vontade (força) gerando um resultado (deslocamento da condição anterior). O
resultado desse deslocamento se tornou bem de consumo. E assim caminhou a
humanidade por diversos atalhos.
No
mundo virtual a noção de força é totalmente diferente: não servem os músculos,
não serve a quantidade de propriedades, os papéis assinados, nem o acúmulo de
moedas. Se no mundo real um único homem lidera um exército, esse mesmo homem
poderoso, na internet, fica fragilizado em seu poder por um hacker de 15 anos
de idade. O medo que o mundo viveu de sucumbir à guerra fria das bombas
atômicas, que modificaria fisicamente nossas vidas, hoje ficou irrisório perto da
destruição que esse mesmo suposto menino de 15 anos seria capaz de provocar. O
poder/força está sendo totalmente deslocado (dando o maior trabalho!).
Portanto
o que sustentou todas as teses sócio-políticas das relações entre recursos
naturais (pré-deslocamento), trabalho e poder terão que ser revistas
completamente, ou já estão sendo, pois o sonho de descentralização virou
realidade por causa da rede virtual!
Estamos
adentrando num mundo sem territórios delimitados, sem governos isolados, gerado
por todos ao mesmo tempo, sem hierarquias, nem bons nem maus, sem raças,
línguas, culturas e nosso deus agora (depois de deposto o petróleo) é a
ELETRICIDADE!!! (será uma consciência de que nosso sistema é solar?)
Nesse
momento nosso território é o planeta todo (já andamos um pouquinho hein!) e
passamos a necessitar de uma organização unida das nações que nos impele a
eliminar hierarquias e aceitar diferenças.
Com
advento da internet está acelerando o processo de surgimento de uma sociedade
civil planetária, não mais limitada por territórios. Uma consciência integrada
de todo grupo humano está se fazendo presente. Os limites territoriais estão
perdendo a importância em muitas instâncias de nossas vidas, afetando inclusive
a governabilidade do mundo. A economia, a ciência, a técnica já são áreas vistas
como uma unidade mundial. No meio ambiente, por exemplo, percebemos que é necessário
um esforço integrado de todos os povos para que nosso planeta sobreviva em
condições razoáveis para todos. O que está fazendo o mundo olhar para o Brasil,
que há algumas décadas não passava de um país subdesenvolvido, é que o pulmão
da terra está situado dentro do nosso território e, portanto, todos os seres
humanos sentem-se no direito de opinar pela sua preservação. Isto é apenas um
exemplo de como hoje não só percebemos que nossas ações do presente tem
importantes consequências para nosso futuro, mas também que nossas ações num
espaço tem consequências importantes para o espaço global. Cada parte diz
respeito ao todo. Uma bituca de cigarro que jogo na “minha” privada, interfere
na vida de dezenas de pessoas que nem conheço. A ideia de rede que foi
materializada pela internet (rede de informações) na verdade apenas realizou
uma experiência muito mais ampla da existência humana e não humana, que a
física quântica já revelou. Vivemos todos numa teia de espaço-tempo nesse
Universo e a ação/pensamento de um indivíduo causa uma repercussão em toda a
teia que nos une (é nesse sentido que somos todos UM).
O
conceito de propriedade que nos afirmou como indivíduo, e ainda afirma, está
sendo desmantelado. O humano imaginou a democracia, mas para poder realizá-la
precisa poder imaginar-se desapropriado. E a desterritorialização da rede,
também provoca essa desapropriação: não somos mais perfis definidos,
estabelecidos, nossos perfis são flexíveis.
Embora
muitos temam que a criação da internet vá nos jogar num mar infinito de
possibilidades, e essas possibilidades “criadas” interfiram negativamente em
nosso comportamento nos tornando esquizofrênicos, a verdade é que essas
criações só foram possíveis porque de alguma forma já somos assim. Se antes nos
pensávamos uma unidade, se nos percebíamos num único EU, não nos sentimos mais
assim. O que há um século a psicologia rotulava com esquizofrenia, hoje está
diagnosticada de forma diferente porque talvez tenhamos mais Eus do que podíamos
supor.... É em verdade um problema teológico em certa instância. Metafísico mais
propriamente.
Para
nossa estrutura mental atual, tudo isso (que sempre foi deflagrado por
filosofias antigas) é ainda uma nova experiência da realidade o que leva muitas
pessoas a gerarem muita resistência ao novo entendimento. Mas entendimento esse
que de novidade não tem nada, pois o Universo sempre foi assim. Com a
realização da internet o que antes era uma bela filosofia, tornou-se fato
diário e corriqueiro modificando efetivamente nossas relações em várias
instâncias. Os aspectos das relações humanas e organizações humanas que já
pertencem a uma categoria mais dinâmica e fluente, como o dinheiro e a
informação, foram os primeiros a se adequarem a essa nova estrutura. A economia
quebrou significativamente os limites territoriais e o mercado financeiro é um
exemplo da fácil adaptação da riqueza material (ouro) em riqueza virtual (já
aquém dos papéis). Com a fluência ultra veloz e multidirecional da informação,
todas as áreas do conhecimento foram dinamizadas, incrementadas e ampliadas de
tal forma que a velocidade da luz não é mais, para nós, inimaginável. Falamos
qualquer língua, vemos qualquer região do globo, conhecemos todos os seres
humanos!!
Mas
outras áreas da vida humana, justamente aquelas que se modificam posteriormente
às mudanças de consciência coletiva, a saber, a justiça e a lei, estão em fase
primária de adaptação a essa realidade. As leis só são consolidadas depois de
muitas vezes a sociedade demonstrar uma conduta, o que demanda tempo; o que
significa que as condutas se manifestam primeiro em quantidade significativa
para se tornarem padrões e só então exigirem normatizações.
Por
exemplo, o ambiente novo da internet vem gerando condutas que não existem na
vida não virtual e, portanto não foram normatizadas, trazendo a necessidade de
leis específicas para esse ambiente. Esse é um exemplo apenas no que diz
respeito direto ao novo ambiente, mas existem outras tantas situações que são
consequência do ambiente virtual sobre o ambiente não virtual que também vem
solicitando novas regras.
Com
a desterritorialização das relações, uma sociedade planetária (termo de Pierre
Levy) está se explicitando e gerando necessidades específicas para sua
organização. As leis de meio ambiente que servem para um país, as leis de
governança que servem para determinado povo, as leis de criminalização ou
militarização que servem a determinado país, hoje são questionáveis do ponto de
vista global. Já há décadas, talvez desde o fim da guerra fria, ficou muito
claro que o planeta, apesar das divisões territoriais, precisava de um
“conselho” geral, uma organização das nações unidas, para administrar temas
globais. No entanto a cada dia cresce rapidamente a quantidade de “temas
globais” e cada vez mais tem sido necessária a criação de leis e uma justiça
comum ao planeta.
(texto
inspirado em CIBERDEMOCRACIA, livro de Pierre Levy)
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